REALIDADES

Por que do imaginário no passado nada ainda é real? Apenas por não ser contemporâneo!?´Mas ... É do passado que trazemos ao presente a realidade mais sincera!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

ALTERNATIVAS PARA O DIREITO


Alguns ainda acreditam que o juiz, tão-só por formação e dedicação, possa ser o redentor da crise brasileira.
A crise social é a situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade.
A sociedade brasileira está em crise e é crítica. Resta-nos o consolo de suspei­tar que o seu desenvolvimento só possa decorrer de um processo crítico: felizmente está em crise, pois pior seria se permanecesse infensa ao turbilhão de conflitos que carrega em seu seio.
São vertentes da crise brasileira.
a) no plano sócio-econômico, a crise de hegemonia dos setores dominantes, ir­responsavelmente atrelados ao intuito predatório, herdado do período colonial;
b) no plano político, a crise de legitimação do regime democrático representa­tivo, evidenciada pela pouca credibilidade da classe política; e,
c) no plano jurídico-institucional, a crise da matriz organizacional do Estado, que viu esgotada a capacidade de imposição de seu modelo centralizador e corpora­tivo, cooptador e concessivo, intervencionista e atomizador quer dos conflitos sociais, quer das contradições econômicas.
Crise implica em crítica e em julgamento, mas a segurança no julgamento de­corre da certeza de percepção da realidade, o que parece impossível pela própria ins­tabilidade da situação.
Daí porque surgem as contradições no estabelecimento de estratégias que pos­sam vencer a própria crise: tais contradições estão na sociedade e permeiam o produ­to do esforço social, como, por exemplo, a própria Constituição de 1988.
Produto da sociedade, elaborada em longo e tumultuado processo constituinte, a Carta da República não pode deixar de conter as contradições do poder que a ela­borou.
Com o idêntico fervor do fiel ao proclamar o "vade retro, Satanás", procure­mos exorcizar a tentação de exigir que a Constituição, pelo mágico fetichismo de sua expressão gráfica, seja a redenção da sociedade, sobranceira às forças que a criaram, em olímpica neutralidade:
"A Constituição, legitimada pela aceitação da maio­ria, não é só um fenômeno restrito ao interesse dos juristas: antes de ser o Código Político, é o estuário em que se precipi­tam as dúvidas, as crises, os sonhos e a realidade de toda a sociedade.
A Constituição é a criatura cujo criador, consciente de suas imperfeições, tenta mudar a História, aspirando a um ato tão perfeito que suplante seus caracteres humanos.
Depositam-se na nova Constituição todas as esperan­ças.
Dela se pretende que, em um só mágico movimento, o destino seja alterado pela libertação de todas as cadeias; nela suspeitam-se as artimanhas do inimigo e escamoteiam-se os pecados que refletem a própria alma - alguns apenas vislum­bram os próprios direitos e privilégios, esquecidos de que os mesmos só existem porque todos temos deveres e obrigações.
Ela não é somente uma neutra enumeração dos ór­gãos públicos, fins do Estado, direitos e deveres individuais e coletivos ou um nebuloso programa de atuação - o que nela importa, prepondera sobre todas as outras facetas, é o modo de funcionamento, pelo qual se realiza, transforma a reali­dade e cumpre o fim esperado.
O aspecto funcional da Constituição, no entanto, nela não se esgota, pois encontra seus limites nas instituições que por ela são reconhecidas e nos homens que, embora não os possa escolher, com ela devem conviver. A Constituição somos nós."
A contradição sócio-econômica da Constituição está na sua própria essência.
De um lado, saudosa do modelo de Estado-absenteísta e correspondendo ao re­crudescimento mundial do sistema de livre-empresa, intenta garantir o status quo pela inócua afirmação do indivíduo perante as forças sociais, reservando-lhe uma área de atuação infensa ao poder público, através da proclamação dos direitos libe­rais, algumas vezes denominados "liberdades". Tais direitos têm, por conteúdo, a re­serva ao indivíduo de uma área livre de atuação, intangível ao poder, como se vê no princípio da irretroatividade da lei, a garantia do direito de propriedade, a liberdade da atividade comercial e produtiva etc.
O individualismo filosófico, e suas derivações, o liberalismo político e o capita­lismo econômico, todos pressupõem a igualdade dos integrantes da sociedade. Por outro lado, aspirando a eliminação, ainda que lenta e gradual, da discri­minação social (art. 3º), a Constituição institui mecanismos de transformação pela proclamação de direitos de atendimento às necessidades diárias e permanentes, cor­respondendo a um programa para fazer e conservar a igualdade entre os membros da sociedade política, no dizer de Pontes de Miranda. Os direitos "sociais" (art. 6º) ou "novos direitos", têm o conteúdo positivo de prometer prestação de serviço público concreto e divisível: educação, saúde, justiça, lazer, trabalho e outros; decorrem da desigualdade, natural ou criada, existente entre os seres sociais e ensejaram, de al­guns, a crítica de ser a Constituição "utópica-idealista".
A contradição política da Constituição está no dilema entre os modelos de de­mocracia representativa (ou indireta) e direta (por alguns chamada "participativa").
O art. 1º, parágrafo único, proclama a nossa democracia mista, em que pre­domina o modelo representativo, pois diz que, em regra, cabe ao representante eleito o exercício do poder, ficando as formas de participação restritas à previsão constitu­cional.
A democracia indireta é instrumento do liberalismo e visa permitir a predomi­nância do interesse majoritário (ao menos do ponto de vista eleitoral) na tomada da decisão; a democracia direta assegura a dispersão do poder decisório entre órgãos es­tatais, entidades da sociedade civil e cidadãos.
A contradição jurídico-institucional da Constituição decorre do reconhecimen­to do fato da dispersão do poder do Estado, cujo centralismo autoritário correspondia às necessidades do Estado colonial mas hoje é incompatível com a legitimidade do exercício do poder. Daí porque a Constituição, cada vez mais, prevê a existência de núcleos setoriais de poder, assegurando autonomia a entes públicos, nem sempre es­tatais: sindicatos, universidades, Ministério Público, Poder Judiciário, partidos polí­ticos, corporações profissionais e entes de produção econômica.
[5]
Responsável primário pela aplicação do Direito e, assim, o primeiro assegura­dor da eficácia constitucional, o juiz está neste turbilhão de contradições.
O juiz defronta-se com os efeitos da crise sócio-econômica ao tentar resolver causas que decorrem das mazelas sociais, em país de dimensões continentais e classes sociais nitidamente diferenciadas; aí constata que o brocardo "dar a cada um o que é seu" não se aplica quando inexiste distribuição justa das rendas, o que mais se agrava pelo processo inflacionário crônico, a punir excessivamente o assalariado.
As crises política e institucional não passam ao largo do Judiciário, que, cada vez mais, julga causas transindividuais, na ótica da defesa de direitos públicos, difu­sos e coletivos, quando o autor se legitima extraordinariamente para defender, em nome próprio, relevantes interesses comuns a grupos ou a toda a comunidade.
A matéria de trabalho do juiz é o conflito, que é a oposição e a luta entre dife­rentes forças.
Mais avulta o papel do juiz, neste contexto, pelo fato de que nosso sistema ju­rídico-constitucional praticamente não lhe interditou, ao menos formalmente, qual­quer área de atuação.
Pouquíssimos sistemas jurídicos exigiram tanto do juiz, em verdadeira univer­salidade de cognição.
Perante a Toga, submetem-se o indivíduo, os grupos sociais organizados, o Es­tado, seus órgãos e entidades, todos proclamando a condição de titulares do direito subjetivo de exigir a resolução do conflito.
Corolário do poder-dever de julgar e de tudo conhecer, está o sempre recla­mado dever de prestar justiça, como correspectivo ao direito de ação, que é o poder de qualquer ente de exigir a resolução do conflito.
Exercendo a atividade estatal especificamente voltada para a resolução dos conflitos (jurisdição), que é deflagrada pela ação, o juiz dirige o processo, que é a re­lação social, prevista pelo Direito, instrumentada para a resolução do conflito.
Jurisdição, ação e processo constituem a trilogia voltada para a resolução do conflito, na qual o juiz é o centro e principal responsável, a despeito da essencialida­de de funções também voltadas para a administração da justiça, como a Advocacia, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Polícia Judiciária e os sistemas fazendá­rio e penitenciário.
As restrições formais ao exercício da jurisdição podem ser de caráter temporal, como a que se vê no art. 217, § 2º, referente à instância disciplinar desportiva, ou de­correntes do sistema presidencialista de governo, aí abrangendo os atos supremos de cada Poder, como a declaração de guerra, a feitura da paz, a decretação de suspen­são das garantias constitucionais, os atos internacionais. Mesmo assim, resta o con­trole judicial sob os aspectos formais, quando houver, ainda que potencialmente, le­são a direito (art. 5º, XXXV).
Bem mais extensas são as restrições materiais à jurisdição, todas reflexos da ineficácia do poder estatal em determinados setores sociais.
Há grupos sociais aparentemente imunes ao poder do Estado, como os "banqueiros" do jogo do bicho, o narcotráfico, os fazendeiros escravizadores e, em outro nível, as grandes corporações e empresas, que relutam em apresentar, em pro­cesso judicial público, determinados aspectos de sua atuação, optando, cada vez mais, por formas alternativas de composição dos litígios, como, por exemplo, a arbi­tragem.
O processo tradicional também tem sido insuficiente para a resolução de de­terminados conflitos, como aqueles decorrentes de ocupações coletivas da proprie­dade, em que a tutela jurisdicional exige, de início, a citação de número indetermi­nado de pessoas e, a final, em sua execução, da atividade de assistência social do Po­der Executivo, que, muitas vezes, prefere o singelo emprego da força policial. O
A grande restrição material à jurisdição está, desgraçadamente, no fato da marginalização de dois entre três brasileiros, que, pela pobreza ou miséria, não têm direitos a pleitear ou, se os têm, não dispõem de consciência para fazê-lo.
Daí a crise transborda para as expectativas do papel do juiz.
Sujeito do poder estatal e social, alguns somente vislumbram na imparcialida­de do juiz a neutralidade fria e olímpica, incompatível com aquele que tem o dever primário de resolver o conflito, para tal, levar o processo ao momento da decisão.
O protótipo do juiz, como observador do fragor da batalha entre as partes, em que seria não só neutro, mas alheio e distante, vai corresponder ao padrão do Estado liberal-capitalista, absenteísta, que somente pode regular as atividades individuais por lei formal, necessariamente genérica e abstrata e, assim, desatenta aos caracteres pessoais (veja-se o disposto no art. 5º, inciso II, da Constituição, exigindo lei genérica e abstrata para regular as condutas individuais).
Os autores antigos até mesmo diziam que o juiz seria, no processo, o "conviva de pedra".
Mas o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o "conviva de pedra", mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos.
Na função de diretor do processo, cabe ao juiz assegurar às partes a igualdade de tratamento (Código de Processo Civil, art. 125, I) o que lhe exige, em determina­dos momentos, tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade, atu­ando na busca de maior igualdade.
Dirigir o processo é sempre lhe impulsionar o curso, ainda que seja necessário vencer a resistência da parte; é perceber a realidade fática que, muitas vezes, não está expressa nos limites dos autos, determinando as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias (Código de Processo Civil, art. 130); é apreciar livremente a prova, atendendo aos fatos e cir­cunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pela parte (Código de Pro­cesso Civil, art. 131); é expressar na sentença o sentimento, indicando os motivos que lhe formaram o convencimento (Constituição, art. 93, IX).
Os cidadãos não têm direito adquirido à sabedoria do juiz, mas têm direito ad­quirido à independência, à autoridade e à responsabilidade do magistrado.
A lei é genérica e abstrata e não poderia, por si só, propiciar a solução mais adequada nos casos individuais e concretos que o juiz examina.
Desconfia-se da lei, porque, segundo alguns, seria anacrônica, incapaz de acompanhar as mudanças sociais.
Também se inquina a lei de refletir os interesses momentâneos de grupos que, nem sempre, estariam a atender a outros interesses que não fossem os seus; esque­cem-se os críticos da característica do sistema representativo, em que o legislador eleito não pode deixar de se influenciar pelo eleitorado.
Além do mais, a regra genérica e abstrata não pode prever todas as soluções que os novos tempos exigem.
Daí o conflito para o julgador: Lei ou Justiça?
Muitos confundem a Lei (Lex) com o Direito (Ius) e com a Justiça (Justitia), embora cada um deles tenha sentido próprio e ofereçam aspectos multifários.
Para alguns, a Lei é o direito positivo, o conjunto de normas genéricas e abs­tratas impostas pelo legislador; para outros, a Lei se confunde com o Direito, que é mais que o direito positivo, pois abrange os costumes e os princípios gerais.
Outros vislumbram que, no Direito, se esgota a Justiça, a qual poderia ofere­cer, também, a perspectiva de visão do mundo que se considera a mais adequada para determinada sociedade em dado momento histórico.
Direito é vocábulo empregado com sentidos diferentes, como se vê na lição de André Franco Montoro:
1 - como a lei ou norma jurídica (direito-norma), na frase "o Direito brasileiro proíbe o duelo";
2 - como a faculdade ou poder de agir (direito-faculdade ou direito-poder), na expressão "o Estado tem direito de cobrar impostos":
3 - como expressão de justiça (direito-justo), na frase "o salário é direito do trabalhador":
4 - como fenômeno social (direito-fato social), na expressão "o Direito é um se­tor da realidade social"; e
5 - como disciplina científica (direito-ciência), na expressão "o estudo do Di­reito requer métodos próprios".
Não existe, pois, somente um significado para o Direito, mas diversas realida­des distintas, que devem ser apuradas para se perceber o conteúdo.
Em decorrência, visando adaptar o Direito às mudanças sociais, sem que per­desse o seu caráter dogmático, novas correntes oferecem soluções para o que deno­minam "imobilismo jurídico".
Necessariamente, as transformações deveriam decorrer, inicialmente, de pro­funda alteração da estrutura judiciária e do papel do juiz, pois a ele cabe o papel de aplicação do Direito no caso concreto e em torno dele giram todos os personagens do processo. Por isso, tais correntes parecem fazer a oposição dilemática entre "legislação/jurisdição" ou "lei/sentença" ou "legislador/juiz", como se fossem opções de antíteses insuperáveis e não estivessem, como estão, em intensa relação dialética, pois somente serão eficazes se complementares entre si.
Temos a Escola do Direito Alternativo, surgida na Europa há mais de vinte anos e que, no Brasil, é divulgada principalmente pelos juízes do Rio Grande do Sul, em cuja escola da magistratura ganhou foros de matéria curricular.
Em tese de mestrado, o juiz catarinense Lédio Rosa de Andrade bem examina o enfoque alternativo à magistratura, tendo sua obra o ponto culminante no capítulo IV, intitulado "Magistratura como instrumento de transformação social", onde afirma:
" Com o uso alternativo do direito não se trata de fa­zer a revolução com o direito, mas de reconduzir as interpre­tações jurídicas progressistas ao desenvolvimento das con­tradições sociais, não para a sobrevivência das instituições, senão para restituir à classe obreira a capacidade criadora da história, diz Barcellona.
Entende-se possível a tranformação social por formas pacíficas, podendo, os magistrados, participar dessa liça com destaque, desde que entendam o lugar por eles ocupado, per­cebam a quem tem servido sua forma de atuar e modifiquem sua prática judicial. Portanto, quando se fala de revolução, não se está pregando, de forma alguma, a luta armada, pois não é essa a única, nem a melhor, opção para a mudança da sociedade. Ao contrário, entende-se ser o processo dialético da procura da hegemonia de uma nova visão, guerra de posi­ção, conforme conceitua Antonio Gramsci, a firma mais efi­caz de alterar as relações de poder, sem grandes traumas, so­frimentos ou hecatombes, e, também, a mais justa, pois per­mite à população escolher seu próprio caminho. Atitude re­volucionária, todavia, por visar a modificar as instituições, tornar o uso do poder eqüitativo, transferir o comando da so­ciedade, entregando ao próprio povo a direção de seu destino, transformado em autor de sua história."
O movimento apresenta outras denominações, como, por exemplo, o Direito Insurgente
[14] ou Direito achado na rua.
O uso alternativo do Direito não implica, no entanto, em rompimento absoluto com a legalidade, como se observa, por exemplo, em trabalho versando sobre o papel do Ministério Público, instituição voltada para a legalidade estrita, onde se concluiu:
"1. A evolução histórica do Ministério Público revela o seu deslocamento institucional na superestrutura do Esta­do, passando a integrar e a representar a sociedade civil. O Ministério Público é um órgão da sociedade civil.
2. Como órgão integrante da sociedade civil, cumpre ao Ministério Público incrementar o processo de democrati­zação da sociedade brasileira, canalizando os valores reinan­tes no seio das classes populares e contribuindo, na sua esfe­ra de atuação, para a superação da alienação política e econômica dessas classes.
3. Como canal de demandas sociais e coletivas, o Mi­nistério Público alarga o acesso à Justiça e contribui para a democratização do aparelho jurisdicional do Estado.
4. O Ministério Público atua, assim, como agente cri­ador e aplicador do direito, adequando-o à realidade social e subjacente, permeada de conflitos complexos e diversificados, irredutíveis a um tratamento unitário e formal pelo direito posto."
Vê-se, pois, que tais correntes não aspiram a criação de um novo Direito, mesmo porque o Direito que vislumbram não perdeu o contato com o Direito que aí está; não revolucionam o Direito, simplesmente pretendem a reforma de seu uso.
O Direito é sempre o mesmo, independentemente de seu uso.
O Direito não se resume ao apego excessivo ao texto legal, porque já ensina­vam os clássicos que o Direito náo se esgota na Lei; no entanto, não se esqueça o juiz das palavras de Eduardo Couture: "o juiz é um homem que se move dentro do Di­reito como o prisioneiro dentro de seu cárcere" - somente com o Direito e através do Direito pode ser alcançado a Justiça.
Também o juiz, como ser humano que é, tem o direito subjetivo, o dever jurí­dico e o dever moral de lutar pela Justiça, de fazer do trabalho o produto de seu es­pírito.
Seu ofício também exige técnicas que somente serão criadas e desenvolvidas pela projeção de seu espírito ao produto do trabalho; para tal, deve se socorrer de sua formação e de sua ciência, mas não pode perder de vista de que o brocardo "fiat Justitia pereat mundus" ("faça-se Justiça, ainda que o mundo pereça") não corres­ponde mais à necessidades do mundo moderno e que o ato de poder não pode se tra­duzir em injustiça.
A dogmática tradicional ou as correntes alternativas nada mais são que tenta­tivas de abrir caminhos mais amplos para o juiz no seu ofício de realizar o Direito; são instrumentos e não o fim de sua missão. Delas deve se socorrer, mas não pode fungi-las, de instrumentos, em fim.
Ao juiz basta incorporar seu espírito à sentença, pois ela expressa seu senti­mento de Justiça.
Ao juiz basta julgar para realizar o Direito; não realizará o Direito se denegar a Justiça.
Julgar é preciso.
"As garantias jurídicas, ou seja, vincular as funções do Estado a normas gerais, protegem, junto com as liberdades codificadas no sistema de Direito Privado burguês, a ordem do "mercado-livre". Interven­ções estatais sem autorização através de uma lei não são, da perspectiva de seu sentido sociológico, pri­mariamente condenáveis por ferirem princípios de justiça estatuídos por direito natural, mas simples­mente porque seriam imprevisíveis e, por isso, quebrariam a espécie e a extensão de racionalidade que há no interesse das pessoas privadas operando capitalisticamente. Senão faltariam exatamente aquelas "garantias da previsibilidade" que já Max Weber descobriu no capitalismo industrial: o cálculo das chances de lucro exige um intercâmbio que transcorra de acordo com as expectativas de probabilidade. Por isso é que estar no âmbito da competência e de acordo com uma justiça formal se tornaram crité­rios do Estado de Direito burguês: administração "racional" e justiça "independente" são, a nível da organização, os seus pressupostos. A própria lei, a que o Executivo e a Justiça precisam se ater, tem de ser igualmente obrigatória para todos: não deve, em princípio, permitir nenhuma dispensa ou privilé­gio." (Jürgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Strukturwandel der vffentlinchkeit), tradução de Flávio K. Kothe, Rio de Ja­neiro, Tempo Brasileiro, 1984).
Após lembrar a visão liberal de que os direitos fundamentais representam uma área interdita à atua­ção estatal, Zippelius afirma que tal conceito seria mais adequado ao Estado típico do século XVIII e hoje proporcionaria uma garantia incompleta da liberdade individual "a qual pode ser ameaçada tam­bém a partir de outros pontos, como, por exemplo, a partir daqueles grupos e associações que têm a ca­pacidade de fixar normas profissionais e de conduta e de as impor aos seus membros". O mesmo mestre transcreve a lição de Nawiasky-Leusser: "a pessoa está colocada perante não só a força da comunidade encarnada no Estado, mas também perante as forças econômicas próprias de indivíduos e de associações e que, em atenção a isso, uma das mais sérias tarefas da lei constitucional é a proteção con­tra o abuso da força que pode ser praticado por aqueles indivíduos e associações". Contudo, "não é possível tirar rigorosamente a conclusão de que todos os direitos fundamentais, como direitos subjeti­vos públicos, sejam oponíveis também contra todo e qualquer indivíduo no plano geral das relações ju­rídicas privadas. Importa não simplificar excessivamente. 'A aplicação indiscriminada dos direitos fun­damentais às relações jurídicas privadas restringiria a projeção livre da personalidade de modo intole­rável, anularia a liberdade em nome da mesma liberdade'(G. Dahm). Só o Estado paternalista é que se atribui a si próprio a missão de defender os cidadãos contra si próprios numa extensão tão grande quanto possível" (Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado -Allgemeine Staatlehre- 2ª edição, Lis­boa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p . 173.

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