REALIDADES

Por que do imaginário no passado nada ainda é real? Apenas por não ser contemporâneo!?´Mas ... É do passado que trazemos ao presente a realidade mais sincera!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

CORROSÃO NA CORRUPÇÃO

Foro privilegiado trava ações de corrupção

A demora em se obter decisões judiciais definitivas que permitam a devolução de recursos desviados não é um problema apenas do Brasil, mas a Justiça brasileira coleciona processos que jamais são concluídos. Uma certa tolerância dos tribunais em relação aos crimes econômicos e a infinidade de recursos existentes na atual lei processual, que permite a elaboração de teses jurídicas cada vez mais complexas, são algumas das explicações para que isso ocorra.
No caso da corrupção - que, segundo especialistas, é o crime que, no Brasil, gera boa parte do dinheiro posteriormente lavado - a ausência de condenações é ainda mais gritante. A principal justificativa é a existência do foro privilegiado, que garante que processos contra autoridades sejam julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Para se ter uma ideia, há duas semanas a corte condenou, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, um político por crime de corrupção, em um processo contra o deputado federal José Gerardo Oliveira de Arruda (PMDB-CE) ajuizado em 2006.
O exemplo mais emblemático da demora do Supremo em julgar autoridades acusadas de corrupção e que têm direito ao foro privilegiado é o do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP), que, segundo informações do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Estado de São Paulo, teria desviado mais de US$ 250 milhões do município de São Paulo quando ocupou o cargo de prefeito. Parte desse valor, encontrado nos Estados Unidos, Suíça, França, Luxemburgo, Inglaterra e Ilha de Jersey, já está bloqueada, mas não pode retornar ao Brasil porque o ex-prefeito não foi condenado em nenhum dos inúmeros processos penais a que responde.
Todos os processos contra Paulo Maluf migraram para o Supremo em 2005, assim que ele foi eleito para ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados e conquistou, com isso, o benefício do foro privilegiado. Mas até hoje nenhum foi julgado. No Supremo, Maluf é parte em 12 ações penais e inquéritos por crimes contra o sistema financeiro nacional e a administração pública, crimes de responsabilidade, de licitação e tributário, corrupção e lavagem de dinheiro - além de uma dezena de outras ações judiciais.
Diante de processos que jamais são encerrados, especialistas em lavagem de dinheiro buscam alternativas para que se consiga recuperar recursos desviados sem que seja necessário o término das ações judiciais. Uma das ideias em debate é um instrumento jurídico denominado "extinção de domínio". O mecanismo permite que o Ministério Público entre com uma segunda ação na Justiça - além do processo penal que busca a condenação do criminoso - especialmente para bloquear e retomar bens e dinheiro que tenham sido desviados. Bastaria, para isso, que fique provado que imóveis, veículos e outros bens ou o dinheiro tenha sido obtido por meios ilícitos. Ainda que seja necessária uma nova ação judicial, em geral ações de cobrança são mais céleres do que ações criminais. A possibilidade de réus em processos penais perderem seus bens antes de serem condenados está em estudo desde 2005 pelo grupo que compõe a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), que elabora um anteprojeto de lei sobre o tema. No entanto, a medida é considerada complexa e de difícil aprovação - embora já exista na Colômbia, Peru, México e Estados Unidos.
Uma outra saída para recuperar recursos desviados vem de fora e está em plena aplicação na Suíça - país que vem, ao longo dos anos, tentando alterar sua imagem de paraíso fiscal com o incremento da cooperação internacional em casos de crimes transnacionais. O governo suíço se contrapôs a uma decisão da Justiça local em um dos mais rumorosos casos de corrupção no mundo e manteve o bloqueio de milhões desviados do Haiti pelo ditador Jean-Claude Duvalier, conhecido como Baby-Doc, durante seu governo, de 1971 a 1986.
O bloqueio do dinheiro foi feito ainda em 1986 a pedido do Haiti, que precisava apenas garantir que havia um processo contra Baby-Doc em andamento na Justiça local - após a decisão definitiva, o dinheiro seria devolvido ao país. Mas o processo foi interrompido por uma nova ditadura no Haiti e, após 12 anos sem uma solução, o governo suíço estendeu o bloqueio politicamente e apresentou ao parlamento um projeto de lei que permite que recursos desviados de Estados falidos sejam devolvidos sem necessidade de que os processos cheguem a fim. O projeto ainda não foi aprovado.
Justiça de outros países garante a volta do dinheiro
Embora a estratégia do Ministério da Justiça durante o governo Lula tenha sido a de reforçar os instrumentos de cooperação internacional para recuperar recursos desviados do país e combater a lavagem de dinheiro, na prática a estratégia tem sido prejudicada pela ausência de condenações na Justiça. A consequência disso é que a recuperação do grosso do dinheiro já retomado pelo Brasil em casos de desvios ao exterior deve-se às Justiças dos países onde os valores foram encontrados.
O caso que envolve o escândalo que ficou conhecido como Propinoduto é um dos exemplos mais recentes: os US$ 30 milhões desviados pelos fiscais do Rio de Janeiro e encontrados fora do país estão em vias de cruzar as fronteiras: já saíram das contas bancárias dos autores dos crimes na Suíça e foram depositados em uma conta no exterior para, em seguida, retornarem ao Brasil. Mas isso só ocorreu porque a Justiça suíça condenou seus banqueiros pela lavagem de dinheiro dos fiscais (veja quadro ao lado). No Brasil, segundo Gino Liccione, procurador da República no Rio responsável pelo caso do Propinoduto, o processo ainda aguarda o julgamento dos recursos no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os mais de 20 réus foram condenados em primeira e segunda instâncias a penas que variam de 14 a 17 anos de prisão. "O problema é que a Justiça condena, mas não conclui os processos", diz Liccione.
Em outros dois escândalos de corrupção mais antigos - que envolveram a advogada Jorgina de Freitas Fernandes, conhecida como a maior fraudadora do INSS, e o juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, que desviou parte do valor destinado à construção do novo fórum trabalhista da capital paulista -, decisões de Justiças estrangeiras também foram as responsáveis pela retomada de recursos desviados ao exterior. E há exemplos ainda mais esdrúxulos: US$ 1,2 milhão desviados do município de São Paulo por Celso Pitta durante sua gestão como prefeito, de 1997 a 2001, voltaram ao país porque Nicéia Pitta, ex-mulher do prefeito, autorizou. Segundo o procurador Rodrigo de Grandis, do Ministério Público Federal em São Paulo, a conta havia sido aberta em nome dela, que serviu como testemunha de acusação no processo contra o ex-prefeito.
Os acordos de cooperação ganharam a atenção do Ministério da Justiça durante a gestão de Márcio Thomaz Bastos, quando foi criado o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), vinculado à Secretaria Nacional de Justiça e dedicado exclusivamente a intermediar a recuperação de recursos no exterior em processos penais em curso na Justiça e sob responsabilidade do Ministério Público. O departamento - até há duas semanas sob o comando de Romeu Tuma Jr., secretário nacional de Justiça hoje investigado pela Polícia Federal por suspeita de envolvimento com um contrabandista chinês (leia matéria abaixo) - concentrou esforços na negociação de acordos bilaterais e multilaterais de cooperação penal internacional. Hoje há acordos com mais de 100 países, entre assinados e negociados, que permitem ou irão permitir a troca de informações, o bloqueio de bens e contas bancárias e a devolução de recursos desviados.
Enquanto a Justiça não julga os casos de lavagem de dinheiro investigados e processados, os recursos desviados se mantêm bloqueados, mediante pedidos de cooperação internacional. Mas, de acordo com Boni de Moraes Soares, diretor interino do Departamento de Recuperação de Ativos, há uma clara convicção de que o problema é, na verdade, muito maior do que apenas trazer os US$ 3 bilhões hoje bloqueados de volta aos cofres do Tesouro brasileiro. "Há muito mais dinheiro desviado do país e mantido lá fora, mas que não é descoberto porque as autoridades não investigam a lavagem de dinheiro", diz.
A percepção se comprova em números. Em Alagoas, Estado onde surgiu o escândalo que ficou conhecido por "esquema PC Farias", numa alusão ao então tesoureiro de campanha do ex-presidente Fernando Collor de Mello, que sofreu um processo de impeachment, renunciou ao cargo e anos mais tarde foi absolvido pelo Supremo, até hoje nunca houve investigação por lavagem de dinheiro. Na 6ª Vara Criminal da Justiça Federal em São Paulo, especializada em lavagem de dinheiro, não há, segundo o juiz titular Fausto Martin de Sanctis, um único caso envolvendo crime de corrupção atualmente. "Não há produção de estatísticas nesse campo", diz. Isso ocorre porque os casos não chegam ao Poder Judiciário, e os poucos que chegam jamais são julgados - daí a dificuldade em recuperar o dinheiro. "O Brasil tem avançado timidamente nesse campo, e isso é um sentimento corrente na sociedade", afirma o juiz.


terça-feira, 22 de junho de 2010

Direito, Realidade, Democracia

Jung
Em Jung há passagem que confirma inteiramente a idéia - que nos vem de Platão, e é revisitada por Kant - de que não temos acesso direto à realidade e, portanto, nunca teremos pleno (absoluto) conhecimento em torno dela. Tema recorrente em estudos de epistemologia e de hermenêutica, tratado com clareza e simplicidade (mas sem perder a precisão) por um estudioso da mente humana. Não há como negar a semelhança entre o que abaixo está transcrito e as idéias de Gadamer (horizonte hermenêutico e pré-compreensão), por exemplo, embora Jung parta de premissas ligadas ao estudo da mente, e não propriamente calcadas na filosofia ou na hermenêutica. Por outro ângulo, com outra bagagem (ou por outra lente), observa a mesma realidade:
"Tudo o que percebo externa e internamente é representação ou imagem, uma entidade psíquica, causada, segundo penso, por um correspondente objeto 'real'. Mas devo admitir que minha imagem subjetiva só é idêntica grosso modo com o objeto. Todo pintor de quadros concordará com essa afirmação, e o físico acrescentará que aquilo que nós chamamos 'cores' são na verdade comprimentos de ondas. A diferença entre imagem e objeto real mostra que a psique, ao perceber o objeto, altera-o acrescentando ou excluindo certos detalhes. Por isso a imagem não é causada inteiramente pelo objeto; também é influenciada por certas condições psíquicas pré-existentes, que nós podemos corrigir apenas em parte..." (JUNG, C. G. Cartas - 1956-1961. Petrópolis: Vozes, 2003, v. III, p. 231)

domingo, 20 de junho de 2010

Contribuições para ampliar o acesso à Justiça

Embora, possamos ousar dizer que o conceito de acesso à justiça seja quase intuitivo, melhor seria consultarmos a doutrina para melhor entendimento da questão e para que tenhamos melhor referência junto à ciência processual civil. Da lição de Cintra, Grinover e Dinamarco, temos:
Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente em "acesso à ordem jurídica justa. (...) Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. Como se verá no texto, para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente (inclusive em processo criminal), sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos); mas para a integralidade do acesso à justiça, é preciso isso e muito mais. A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a idéia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois (b) garante-se a todas elas (no cível e no criminal) a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa (princípio do contraditório), podendo exigir dele a (d) efetividade de uma participação em diálogo -, tudo com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de eliminar todo resíduo de insatisfação. Eis a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica apontada para a pacificação com justiça.
No mesmo sentido, José Roberto dos Santos Bedaque leciona que:
Acesso à justiça, ou mais propriamente, acesso à ordem jurídica justa, significa proporcionar a todos, sem qualquer restrição, o direito de pleitear a tutela jurisdicional do Estado e de ter à disposição o meio constitucionalmente previsto para alcançar esse resultado. Ninguém pode ser privado do devido processo legal, ou, melhor, do devido processo constitucional. É o processo modelado em conformidade com garantias fundamentais, suficientes para torna-lo équo, correto, giusto.
Também nessa toada é a lição de Dinamarco:
(...) Falar em instrumentalidade do processo ou em sua efetividade significa, no contexto, falar dele como algo posto à disposição das pessoas com vistas a fazê-las mais felizes (ou menos infelizes) mediante a eliminação dos conflitos que as envolvem, com decisões justas. Mais do que um princípio, o acesso à justiça é a síntese de todos os princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional ou infraconstitucional , seja em sede legislativa ou doutrinária e jurisprudencial. Chega-se à idéia do acesso à justiça, que é o pólo metodológico mais importante do sistema processual na atualidade, mediante o exame de todos e de qualquer um dos grandes princípios.
E, em outra obra, citando Kazuo Watanabe, leciona:
Acesso à justiça é acesso à ordem jurídica justa (ainda, Kazuo Watanabe), ou seja, obtenção de justiça substancial. Não obtém justiça substancial quem não consegue sequer o exame de suas pretensões pelo Poder Judiciário e também quem recebe soluções atrasadas para suas pretensões, ou soluções que não lhe melhorem efetivamente a vida em relação ao bem pretendido. Todas as garantias integrantes da tutela constitucional do processo convergem a essa promessa-síntese que é a garantia do acesso à justiça assim compreendido.
Já Horácio Wanderlei Rodrigues, citado por Adriana dos Santos Silva, ensina que na doutrina há dois sentidos para a expressão "acesso à justiça". O primeiro coloca "justiça" como sinônimo de "poder judiciário". Assim, nesse caso, acesso à justiça seria sinônimo de acesso ao Poder Judiciário. O segundo sentido da expressão acesso à justiça toma uma conotação dentro de uma escala de valores e direitos fundamentais para o ser humano, que transcende a justiça estatal. Não se esgota no Poder Judiciário. Mauro Cappelletti e Bryant Garth, também citados por Adriana dos Santos Silva, reconhecem a dificuldade de se chegar a uma definição consensual do termo "acesso à justiça". O acesso à justiça deve estar vinculado mais ao conceito axiológico de justiça. Assim, contaríamos com a possibilidade de buscar a justiça, não somente por meio do Poder Judiciário, como também, pela mediação e pela arbitragem que, conforme visto anteriormente, precederam a jurisdição. Cientes do conceito de acesso à justiça, cabe-nos investigar quais os maiores obstáculos a serem vencidos para que tal acesso seja amplo. Ao escrever sobre as "Justificativas para adoção de tutelas sumárias", Bedaque ensina:
Inúmeras são as dificuldades enfrentadas por quem se dispõe a pleitear a tutela jurisdicional do Estado, na tentativa de obter proteção a um direito lesado ou ameaçado. A Justiça está em crise, não só no Brasil, como na maioria dos países. E crise na Justiça implica, necessariamente, Crise de Justiça....Os fatores que contribuem para esse estado de verdadeira calamidade podem ser resumidos basicamente na exagerada demora e no alto custo do processo.
Cabe, então, perguntar: como a ciência processual pode atuar para garantir e até ampliar o acesso à justiça visando reduzir a "exagerada demora e o alto custo do processo"? A resposta é ofertada pelo atual estágio de desenvolvimento da ciência processual: a fase instrumentalista, em que o processo é tido como um instrumento a serviço da paz social, a serviço da ordem jurídica justa. Cândido Rangel Dinamarco nos diz que:
(...) É a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimentos pelo aprimoramento do sistema processual, sendo consciente ou inconsciente tomada como premissa pelos que defendem o alargamento da via de acesso ao Judiciário e eliminação das diferenças de oportunidades em função da situação econômica dos sujeitos, nos estudos e propostas pela inafastabilidade do controle jurisdicional e efetividade do processo, nas preocupações pela garantia da ampla defesa no processo criminal ou pela igualdade em qualquer processo, no aumento da participação do juiz na instrução da causa e da sua liberdade na apreciação do resultado da instrução(...)Aprimorar o serviço jurisdicional prestado através do processo, dando efetividade aos seus princípios formativos (lógico, jurídico, político, econômico) é uma tendência universal, hoje. E é justamente a instrumentalidade que vale de suficiente justificação lógico-jurídica para essa indispensável dinâmica do sistema e permeabilidade às pressões axiológicas exteriores: tivesse ele seus próprios objetivos e justificação auto-suficiente, razão inexistiria, ou fundamento, para pô-lo à mercê das mutações políticas, constitucionais, sociais, econômicas e jurídico-substanciais da sociedade.
Assim, hoje, é clara a tendência de que o processo seja um instrumento para resolver e pacificar os litígios. Dentro desse prisma, foram trazidas para o ordenamento jurídico várias normas que muito contribuíram para ampliar o acesso à justiça. Dentre elas temos a Lei dos Juizados Especiais, nº 9099/1995; a Lei da Ação Civil Pública, nº 7347/1985; o Código de Defesa do Consumidor, Lei nº8778/1990; o Código da Criança e do Adolescente, Lei nº 8069/1990; a Lei nº 9079/1995, que criou a ação monitória (arts. 1102a, 1102b e 1102c do CPC); a antecipação da tutela. Há ainda, as reformas do Código de Processo Civil e a Emenda Constitucional de nº 45. Essas leis em sentido lato possuem o espírito de diminuir o tempo do processo, reduzir seu custo e, com isso, ampliar o acesso à justiça. Mas, em que pesem todas as alterações, na prática, o usuário do serviço não sente significativa melhora do quadro. Algumas leis, ao mesmo tempo em que aceleram o processo, criam mais direitos. Com isso, há maior número de lides postas à apreciação do Judiciário, que não tem sua estrutura acrescida na mesma proporção da demanda solicitada. É relevante, também, referirmo-nos à especialização da justiça, como elemento garantidor do "acesso". Como exemplo, podemos citar as varas cíveis especializadas em questões de família e sucessões, infância e juventude, fazenda pública, dentre outras e as justiças especializadas como a Justiça Federal e a Justiça do Trabalho. Remetendo-nos, agora, ao conceito axiológico de acesso à justiça, uma alternativa, para se evitar o total colapso do sistema judiciário, poderia ser o incentivo da utilização da mediação[42] (Projeto de Lei nº4827-B/1998) e da arbitragem (Lei nº9307/1996), formas de solução de conflitos extrajudiciais.
Merece destaque, ao se falar em acesso à justiça, a nossa Constituição Federal. Ela oferece uma série de princípios e garantias que muito contribuem para ofertar acesso à ordem jurídica justa. Nos incisos do art. 5º, encontramos várias ferramentas, facilitadoras do acesso à justiça. As seguintes disposições servem de exemplo: O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor (XXXII); a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (XXXV); não haverá juízo ou tribunal de exceção (XXXVII); ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (LIII); ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (LIV); aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (LV); são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (LVI); a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (LX); não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel (LXVII).
Não podemos esquecer, ainda, os "remédios constitucionais" habeas corpus, mandado de segurança, habeas data e mandado de injunção, assim como a assistência jurídica integral e gratuita. A Emenda Constitucional nº 45 acrescentou, no rol do art. 5º, o inciso LXXVIII, que garante a todos, tanto no processo judicial, quanto no administrativo, duração razoável e meios para garantir a celeridade da tramitação. Há ainda, na CF, outras garantias, que também lançam reflexos no acesso à justiça, tais como as garantias da magistratura. Essa última Emenda Constitucional, também conhecida por "reforma do judiciário", trouxe vários dispositivos que, espera-se, contribuam para o melhor acesso à justiça. Apenas como exemplo citamos os §§ 2º e 3º do art. 107, os §§ 1º e 2º do art. 115 e os §§ 6º e 7º do art. 125, que criam a justiça itinerante, bem como recomendam a descentralização dos Tribunais, na Justiça Federal, Justiça do Trabalho e nas Justiças Estaduais. Outra questão relevante a ser considerada é a de que o maior cliente do Judiciário, é sabidamente, a Administração Pública. Assim, tanto o Executivo Federal, quanto os estaduais e os municipais, figuram em um dos pólos da maioria das ações, contribuindo significativamente para o congestionamento da máquina judiciária. Ademais, a Fazenda Pública goza de prazos diferenciados e, mais, a Administração Pública Federal conta com uma justiça especializada para os casos em que figure em um dos pólos da ação (Justiça Federal), além de efetuar pagamentos, regra geral, por meio de precatórios. Mas, valendo-nos do Direito Administrativo, especialmente dos conceitos sobre interesses primário (interesse público propriamente dito) e secundário (interesses particulares, individuais do Estado, como pessoa jurídica), ensinados por Celso Antônio Bandeira de Melo, temos que é interesse primário da Administração Pública cumprir bem a lei. Se isso fosse realmente observado, não seria o Executivo o maior cliente dos serviços jurisdicionais.

DISTRIBUIÇÃO DA JUSTIÇA

O Estado atende satisfatoriamente aos brasileiros no que toca à distribuição de justiça? Acreditamos que a maioria dos que lerem essa pergunta responderá negativamente, pois a má qualidade do atendimento prestado domina a opinião geral. A própria demora na prestação jurisdicional reflete a falta de qualidade desse serviço. Neste trabalho, procuraremos fazer breve análise dos fatores que distanciam a população do amplo acesso à justiça.
O que despertou o interesse pelo tema foi o fato de que o processo civil, hoje, é visto pelo processualista moderno como um instrumento a serviço da paz social. Todavia de nada adiantaria todo o arcabouço da ciência processual, que tem, inclusive, princípios próprios e é estudada por ampla doutrina, se o processo não atendesse ao seu escopo maior, que é o de distribuir justiça.
Nessa direção é a dicção de Cappelletti e Garth:
O ‘acesso’ não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.

sábado, 19 de junho de 2010

COTAÇÃO

16/6/2010
Sem cotas, Senado aprova Estatuto da Igualdade Racial

Depois de sete anos de tramitação no Congresso, o Senado aprovou ontem o Estatuto da Igualdade Racial, sem criar cotas para negros na educação, nos partidos políticos nem no serviço público. No texto aprovado também foi retirada a concessão de incentivos fiscais a empresas como forma de estimular a contratação de negros tanto no setor público quanto no privado. A retirada desses pontos foi proposta pelo senador Demóstenes Torres (DEM-GO), relator do texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, e foi aceita pelos parlamentares como parte de um acordo para viabilizar a votação. O senador suprimiu o artigo que estabelecia políticas de saúde específicas para os negros e proposta que dispensava a exigência de representação do ofendido para processamento de crimes contra a honra (injúria, calúnia ou difamação) praticados contra funcionário público. O projeto de lei (PLS 213/03), de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), passou por diversas modificações no Senado e na Câmara. O texto foi aprovado ontem na CCJ e foi votado simbolicamente pelo plenário. O estatuto vai a sanção do presidente da República. Autor do texto, Paim considera como pontos positivos do estatuto o reconhecimento ao livre exercício de cultos religiosos e o direito dos remanescentes de quilombos às suas terras. O Estatuto da Igualdade Racial prevê garantias e o estabelecimento de políticas públicas de valorização aos negros brasileiros. Na área educacional, o texto determina a obrigatoriedade, nas escolas de ensino fundamental e médio, do estudo de história geral da África e da população negra no Brasil. Neste último caso, os conteúdos serão ministrados como parte do currículo escolar com o objetivo de resgatar a contribuição negra para o "desenvolvimento social, econômico, político e cultural do país". Muitas das emendas apresentadas pelo relator Demóstenes retiraram do texto do substitutivo as expressões "raça", "racial" e "étnico-raciais". O relator justificou que "geneticamente, raças não existem". Ele suprimiu expressões como "derivadas da escravidão" e "fortalecer a identidade negra". No primeiro caso, observou que, "sem esquecer os erros cometidos, devemos voltar nosso esforço para o futuro e buscar a justiça social para todos os injustiçados, sem qualquer forma de limitação". No segundo, considerou não existir no Brasil uma "identidade negra" paralela a uma "identidade branca". Durante a discussão do estatuto no Senado, declarações de Demóstenes geraram polêmica. Ao tentar demonstrar a corresponsabilidade de negros no sistema escravista vigente no Brasil durante quatro séculos, o senador disse, em audiência pública, que os escravos eram o "principal item de exportação da economia africana" até o início do século 20 e afirmou que a miscigenação não se deu por estupro, mas sim de "forma muito mais consensual" do que gostaria o movimento negro.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A "GRILAGEM" INTERNACIONAL

A “GRILAGEM” INTERNACIONAL FEITA EM NOME DOS ÍNDIOS

Na Amazônia, os territórios não são conquistados no sentido militar clássico, mas pela neutralização de seu desenvolvimento socioeconômico e de seu povoamento, para, em uma fase posterior, serem eventualmente declarados como territórios sem "soberania efetiva".Foi o que aconteceu com a região do Pirara, a leste do estado de Roraima. Hoje, a área compõe o sul da Guiana, mas foi parte do território brasileiro até o início do século XX. A "Questão do Pirara" surgiu ainda no século XIX, quando a Inglaterra fomentou uma disputa fronteiriça com o Brasil, alegando que os índios que viviam na região reclamavam a proteção inglesa. O Brasil cedeu, e retirou do Pirara suas representações civis e o destacamento militar, reconhecendo provisoriamente a neutralidade do território indígena.Em 1842, no entanto, a Inglaterra colocou marcos fronteiriços na região, usurpando terras brasileiras para sua colônia, a Guiana. Finalmente, em 1904, o governo brasileiro aceitou o laudo arbitral da Itália, cujo parecer foi favorável à Inglaterra. O resultado da "grilagem" praticada sob o pretexto da proteção aos índios foi a perda de 19.630 km² do território nacional.Hoje, algo semelhante vem acontecendo com a área da Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Em 2005, sob pressão de Ongs indigenistas patrocinadas com dinheiro internacional, o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, assinou uma portaria autorizando e o presidente Lula decretou a retirada de toda a população não-índia desta região da extremidade norte de Roraima.Diante da resistência do governo estadual e dos agricultores da Raposa-Serra do Sol, que são contra a retirada, a Ong CIR (Conselho Indigenista de Roraima) encaminhou à ONU na primeira quinzena de janeiro deste ano um documento pedindo que "sejam adotadas medidas específicas para proteger a integridade das comunidades indígenas da Raposa-Serra do Sol e o seu direito à terra".Para quem conhece a história e o desfecho da "Questão do Pirara", como Nilder Costa, a legitimidade aparente destas reivindicações pode não acabar bem.Do ponto de vista geopolítico e histórico, a enorme pressão de fora para a criação da reserva indígena Raposa-Serra do Sol pode ser considerada uma espécie de continuação do caso Pirara, por conter os mesmos ingredientes e motivações. Instalada de fato a reserva, não tenho dúvidas que o processo passaria para a fase seguinte, que seria a obtenção da plena "autonomia" indígena sobre o território e sobre o sub-solo da reserva.Desinformação para despovoarPara o historiador Said Barbosa Dib, a visão anti-civilizatória que permeia os discursos indigenistas é um claro instrumento ideológico que procura passar a idéia de que se deve despovoar a Amazônia. Segundo Said, este interesse pela Amazônia ficou evidente e ampliou as ameaças à soberania nacional depois do Projeto Radam, que foi um processo de documentação do relevo brasileiro feito na década de 1970 com base em imagens de radar.Este interesse tornou-se agressivo com o advento dos satélites, que constataram as potencialidades da região, que hoje é considerada a última e mais rica fronteira econômica do planeta. Logo, a Amazônia virou assunto na imprensa internacional. Nos últimos anos a região está no noticiário dos jornais e televisões do mundo inteiro. Há muito, um noticiário falso e mal intencionado vem projetando no mundo uma imagem distorcida e irreal da Amazônia, onde viveriam homens que destroem a natureza, matam índios e ofendem o ecossistema da maior reserva biótica do mundo.A esta campanha de desinformação, diz Said, juntam-se entidades brasileiras quase sempre formadas com isenção fiscal concedida pelo governo e financiadas com dinheiro estrangeiro para falarem mal do Brasil.Uma campanha espúria cujo objetivo principal é claramente evitar o povoamento efetivo da Amazônia por brasileiros, deixando a região vazia, sem o incômodo de futuras resistências da sociedade civil brasileira às investidas estrangeiras.As fragilidades estão por toda parte. Nas duas universidades públicas de Roraima, um estado com problemas fronteiriços tão flamejantes, ainda não existe nenhum grupo de pesquisa especificamente voltado para o estudo desta questão.Quem tem contato um pouco mais profundo com Roraima relata que naquela região, muitas vezes, ainda se fala, de brincadeira, que "o Brasil" é mais desenvolvido do que lá. Mas a bandeira do estado não deixa dúvidas: o verde representando a mata; o amarelo, a riqueza mineral; o branco, a paz; o azul, o céu de Roraima. Qualquer semelhança não é mera coincidência. A diferença fica por conta de uma linha vermelha que atravessa a parte de baixo da bandeira. Representa a linha do Equador, que corta o sul do estado. A linha imaginária está ali demarcando o Brasil do hemisfério norte, mas Brasil.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O poeta português Fernando Pessoa escreveu:

Num dia excessivamente nítido,
Dia em que dava vontade de ter trabalhado muito
Para nele não trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o grande segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há natureza,
Que natureza não existe
Que há montes, vales, planícies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença de nossas idéias

Afinal, num mundo em constante mutação, mesmo a Natureza, cuja imagem de imutabilidade a ela está sempre associada, tem seu conceito e sua definição atrelada, associada às idéias e visão de mundo de quem a define. Depende, o conceito de natureza, do tipo de sociedade, do tipo de grupo humano, do tipo de pensamento de quem a define. Assim pode-se dizer que, para enfrentar a atual crise ambiental, é preciso, antes mesmo de definir o que é natureza, e para que ela serve, definir quem hoje somos, para que servimos, e que tipo de vida e de mundo desejamos, pois é com base no que somos e no que fazemos que temos, ou teremos, a natureza que queremos.

A ALTERIDADE COMO CATEGORIA FUNDAMENTAL DA ÉTICA AMBIENTAL

A modernidade, guiada pelo pensamento racional, excluiu a natureza do centro das ações éticas, no momento em que passou a vê-la não mais como algo vivo e orgânico, mas sim como objeto, como "coisa" passível de ser dominada, submetida, posta a benefício da idéia de progresso e de satisfação das necessidades consumistas dos homens. Com a modernidade e as revoluções científicas, a natureza deixou de ser um alter. A questão da natureza, do ambientalismo, é uma questão ética no sentido profundo, já que se trata de modos de relação, de concepções de mundo ligadas a concepções de ser humano e, em especial, de alteridade, do sentido que damos àquilo que nos ultrapassa, mas diz respeito a outrem, em sua diferença. Reconhecer a alteridade da natureza é reconhecer que a natureza é mais do que simplesmente uma "coisa" um objeto que podemos conhecer/dominar. Significa reconhecer que a natureza tem vida e deve ser reconhecida na sua dignidade. A palavra alteridade possui o prefixo latino alter, que significa outro, colocar-se no lugar de outro na relação interpessoal, com valorização, consideração, identificação, e diálogo com o outro. A prática da alteridade se conecta tanto entre indivíduos, quanto entre grupos, bem ainda entre indivíduo e a natureza. A prática alteritária leva em conta sempre os fenômenos da complementaridade e da interdependência, no modo de pensar, de sentir, de agir, sem a preocupação com a sobreposição, assimilação ou destruição do outro com o qual nos relacionamos. A prática da alteridade pretende conduzir da diferença à soma nas relações interpessoais entre os seres humanos, na medida em que propõe estabelecer uma relação pacífica e construtiva com os diferentes, na medida em que se identifique, entenda e aprenda a aprender com o contrário. A perda da alteridade, da visão do outro e da natureza como outro, fez com que o homem tenha ampliado o desequilíbrio ecológico, a violência, a intolerância, o ódio, o separatismo. A Ética da Alteridade seria, então, a capacidade de conviver com o diferente, indivíduo, grupo ou natureza, com um olhar interiro voltado justamente para o reconhecimento e acolhimento das diferenças. Significa reconhecer o outro em si mesmo, com os mesmos direitos, com os mesmos deveres e responsabilidades.

terça-feira, 15 de junho de 2010

A capacidade de prever o futuro é a condição de todo
comportamento considerado racional ...
Para conceber um projeto revolucionário, isto é, para ter
uma intenção bem formulada de transformar o presente
por referência a um futuro projetado, é necessário um
mínimo de controle sobre o presente.
(Pierre Bourdieu, em 1998)


1. Introdução
Costuma-se ver o Direito como última instância e via de solução final dos conflitos de interesses. Tal visão, entretanto, precisa ser adaptada à complexidade de interesses tutelados hoje. É preciso que ocorra uma mudança de paradigma e que o Direito seja repensado para que não atue prioritariamente de forma repressiva. É necessária, pelo bem da presente e das futuras gerações, a crescente utilização da precaução.
Ainda mais forte é a necessidade de cautela prévia contra riscos que ameacem a vida no planeta Terra, em virtude da própria natureza dos bens tutelados. Como decorrência, o Direito Ambiental assume, então, um caráter essencialmente relacionado à precaução. Por isso, a mudança de paradigma proposta é inevitável, pois nada adianta todo um aparato legal e judicial para tentar reparar danos irreversíveis.
Além disso, ao se pretender a defesa dos bens ambientais, é preciso considerar diversos fatores, tais como a coexistência de diferentes ecossistemas, sua complexidade e também os riscos de irreparabilidade. Assim, é preciso antever possibilidades de desequilíbrio ecológico e suas consequências, sem apenas esperar que o pior aconteça.
Vislumbra-se, desse modo, a importância do princípio da precaução para a proteção ambiental, como bem expressa Nardy, em trecho abaixo transcrito:
Em conseqüência mesmo do antigo adágio de que "é melhor prevenir do que remediar" (mieux vaut prevenir que guérir), o princípio da precaução sempre assumiu posição central na orientação dos procedimentos destinados a promover a formulação e a implementação de medidas de política ambiental. Segundo esse princípio, os atores que interferem em tais procedimentos devem buscar a completa eliminação das ameaças de degradação do meio ambiente. Em particular, o princípio exige do Poder Público e dos agentes econômicos que atuem aquém de uma faixa de constituição do perigo de dano aos bens, recursos e valores socioambientais.
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo uma análise da definição do princípio da precaução, através do estudo de seus elementos característicos, a fim de se traçar o seu perfil atual e demonstrar a sua importância como instrumento para a proteção ambiental.
2. Evolução
O princípio da precaução, um dos mais inovadores e importantes princípios do Direito Ambiental, surgiu na década de 1970. A sua origem data da Lei sobre Produtos Perigosos para o Homem e para o Meio Ambiente, aprovada na Suécia em 1973.Inobstante, foi no direito alemão que o princípio, conhecido como "Vorsorgeprinzip", ganhou sistematização e maior clareza. No início da década de 1980 a então Alemanha Ocidental enfrentava o problema da chuva ácida sobre as florestas de coníferas, fato que ensejou o governo federal a buscar políticas públicas para evitar ou minimizar os danos ambientais que estavam sendo causados. O "Vorsorgeprinzip" significou, assim, "o reconhecimento de que a responsabilidade pela proteção do meio ambiente envolve a adoção de medidas de prevenção de danos futuros irreversíveis, ainda que inexistam evidências conclusivas sobre suas causas e sobre a plausibilidade de sua ocorrência".De acordo com os ensinamentos de Sampaio, a Lei de Proteção das Águas, ao incluir "como tarefa estatal prevenir ou reduzir danos ambientais futuros mesmo na ausência de riscos presentes", lançou a noção da cautela quando houver a incerteza de dano ambiental, questionando o absolutismo científico diante de riscos ambientais.Acrescenta-se que o princípio também despontou como uma resposta às demandas sociais e ao desenvolvimento do Direito Ambiental, preocupados com as consequências do contínuo desenvolvimento científico e tecnológico, número de desastres ambientais e riscos futuros, associados à ineficácia de ações apenas reparadoras para a proteção do ambiente. Segundo Platiau e Varella, por um lado a sociedade civil tem mais acesso às informações científicas e exige que os riscos sejam controlados pelas autoridades públicas; por outro lado, a comunidade internacional, formada por atores públicos e privados, mobiliza-se em grandes reuniões multilaterais para discutir a proteção internacional do planeta, resultando no rápido desenvolvimento do direito internacional ambiental".Dessa forma, a partir do emprego do princípio da precaução na Alemanha, o mesmo foi progressivamente aceito na Europa, tendo sido reconhecido na Conferência Internacional sobre o Mar do Norte (1987), Convenção de Bamako sobre Movimento Transfronteiriço de Rejeitos Perigosos (1991), Convenção de Helsinki sobre o Mar Báltico (1992), e Convenção de Helsinki sobre Águas Transfronteiriças (1992).Nesse contexto, em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, o princípio da precaução foi consagrado através do princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, passando, a partir de então, a ser citado em grande número de documentos relacionados ao ambiente.Dentre os vários textos de grande relevância para a afirmação do princípio da precaução, podemos citar a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas (1992), a Convenção-Quadro sobre a Diversidade Biológica (1992), Convenção de Paris para a Proteção do Meio Marinho do Atlântico Nordeste (1992), a Carta Europeia de Energia (1994), Protocolo de Biossegurança (2000), Tratado da Comunidade Econômica Europeia (artigo 174.2, título XVI, parte III) e as Emendas de Londres ao Protocolo de Montreal sobre Substâncias que Provocam a Depleção da Camada de Ozônio.
3. Definição
A palavra precaução deriva do Latim precautio-onis e significa "medida antecipada que visa prevenir um mal", cautela, cuidado. Na língua inglesa traduz-se na palavra "precaution", com a seguinte significação: "something you do in order to prevent something dangerous or unpleasant from happening". Em francês trata-se da "précaution: action de prendre garde. Disposition prise par prévoyance pour éviter un mal. Circonspection, ménagement, prudence". E no espanhol "precaución: reserva, cautela para evitar o prevenir los inconvenientes, dificultades o danos que pueden temerse".No entendimento de Treich e Gremaq, a precaução, a fim de proteger o meio ambiente, assume um caráter de questionamento, de cautela quanto ao risco e à incerteza decorrentes da falta de informação presente sobre o perigo, como expõem:O mundo da precaução é um mundo onde há a interrogação, onde os saberes são colocados em questão. No mundo da precaução há uma dupla fonte de incerteza: o perigo ele mesmo considerado e a ausência de conhecimentos científicos sobre o perigo. A precaução visa a gerir a espera da informação. Ela nasce da diferença temporal entre a necessidade imediata de ação e o momento em que nossos conhecimentos científicos vão modificar-se.Há, portanto, na raiz da precaução, um paradoxal rompimento quanto à adoção absoluta do conhecimento científico, quando este ainda não encontrou resposta sobre os riscos de eventual ação e, ao mesmo tempo, a necessidade de contínuos estudos e pesquisas científicas que elucidem as informações necessárias à proteção ambiental.A criação de políticas públicas voltadas para a precaução, tal qual ocorreu na Alemanha Ocidental no início dos anos 1980, ao se enfrentar o problema das chuvas ácidas, significou um novo enfoque quanto à visão da certeza/incerteza científica diante do risco ambiental, como pode ser verificado no trecho de Sampaio abaixo transcrito:Significava dizer que a verdade da ciência deveria ser posta entre parênteses antes de justificar uma determinada atividade humana que pudesse causar dano ao ambiente, pois seus prognósticos poderiam ser provisórios e mesmo incorretos. E poderiam nem existir. Vinha ao mundo a "prudência da espera" ou a cautela decisória diante da incerteza do dano ambiental – a precaução.Por outro lado, o princípio da precaução trouxe como elemento inovador o tempo de uma ação jurídica. Isto significa agir previamente à execução de atividade potencialmente degradadora do meio ambiente, antecipando-se a ação jurídica do âmbito da reparação para a precaução. Trata-se de evitar a omissão consistente em esperar que a ação danosa ocorra para agir somente depois da sua verificação concreta. Através da aplicação do princípio da precaução, ao contrário, o trabalho é voltado para a supressão ou mitigação do risco que venha a causar a degradação ao meio. Há, portanto, uma inversão do processo decisório, o qual passa a ser direcionado a partir da cautela, gerindo-se o tempo de espera entre a ação presente e o progresso científico.Explica Sampaio que o "caráter semanticamente aberto do princípio da precaução tem possibilitado diversas interpretações que, grosso modo, podem ser resumidas em duas grandes concepções: ambas trabalham com a incerteza quanto ao risco de degradação decorrente de atividades humanas e a adoção de medidas de proteção ambiental, medidas essas que assumem visões diferentes entre si.Segundo a concepção forte, apoiada na visão biocêntrica, para a liberação de uma nova tecnologia, é necessário que não haja risco de dano além do previsto, comprovado mediante prova absolutamente segura. Cita-se como exemplo a Carta Mundial sobre a Natureza de 1982, que estabelece: "sempre que efeitos potenciais adversos não forem plenamente conhecidos, as atividades não podem ocorrer".A concepção fraca, a seu turno, tem como orientação assegurar o menor risco da atividade humana. Busca, portanto, adaptar a proteção do meio ambiente ao desenvolvimento econômico de forma a encontrar o benefício global. Para tanto, em geral, parte de uma "ética ambiental antropocêntrica responsável"[16]. É a corrente majoritária entre os teóricos. De acordo com esta concepção, procura-se analisar o custo-benefício das atividades que envolvam riscos de difícil quantificação, bem como alterações legislativas quanto à responsabilidade civil e à prova.
3.1. Precaução e Prevenção
Existe na doutrina uma divergência acerca da distinção entre o princípio da precaução e o princípio da prevenção. Segundo Krämer, "os juristas alemães tendem a considerar que os princípios de prevenção e de precaução não formam mais do que um grande princípio, enquanto a Escola anglo-saxônica prefere fazer a distinção entre os dois".Para aqueles que distinguem os dois princípios, como Machado, para a prevenção é preciso existir informação organizada e pesquisa, enquanto que a precaução tem um "significado mais específico, querendo fornecer indicação sobre as decisões a tomar nos casos em que os efeitos sobre o meio ambiente de uma determinada atividade não sejam ainda plenamente conhecidos sob o plano científico".Nesse sentido, Antunes distingue os dois princípios da seguinte forma: a prevenção se aplica a impactos ambientais já conhecidos, informando tanto o estudo de impacto e o licenciamento ambientais; enquanto a precaução diz respeito a reflexos ao ambiente ainda não conhecidos cientificamente.Platiau e Varella, que também distinguem os princípios, informam que diante das contínuas agressões ao meio ambiente tornou-se necessária a utilização de um novo instrumento que permitisse antecipar os riscos mesmo nos casos de incerteza científica, sem mais esperar que um dano ocorresse para só então agir. Assim expõem:Foi nesse contexto evolutivo que o princípio da precaução começou a tomar forma, notadamente a partir da insuficiência jurídica do princípio de prevenção. Em outros termos, percebeu-se que a reparação não era suficiente para proteger o meio ambiente, por isso o princípio da precaução veio completar a lacuna que o princípio da prevenção deixou. Ao contrário, Fiorillo e Milaré não distinguem os dois princípios. Entende Milaré que o princípio da prevenção, por seu caráter genérico, engloba a precaução, que tem caráter possivelmente específico. Outros doutrinadores sustentam que a prevenção é um meio de aplicação do princípio da precaução. Apesar da divergência doutrinária apontada, defende-se a corrente que entende que a precaução precede à prevenção, pois enquanto aquela pretende evitar os riscos ambientais, esta se refere apenas os danos ambientais, ou seja, enquanto a precaução, que desconhece o risco, não negocia na incerteza dos danos ambientais, a prevenção, por já conhecer as consequências envolvidas, negocia quanto aos danos, adotando medidas para preveni-lo, mitigá-lo ou compensá-lo.Inobstante diferenciação existente, os dois princípios são essencialmente complementares para a efetiva proteção ambiental. E como bem expressa Sampaio: "o esforço de distinção é louvável não fosse a necessária interrelação e a forma complementar de ambos os princípios". Marcada, está, portanto, a importância basilar para o Direito Ambiental tanto do princípio da prevenção, quanto da precaução, independentemente de como as correntes doutrinárias os interpretem.
3.2 Características do Princípio da Precaução
A título de compreensão do princípio da precaução, utilizar-se-á como base de análise o texto do artigo 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, por se tratar da sua forma mais conhecida e empregada. Versa o referido artigo:
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.A partir dessa definição, destaca-se como características do princípio da precaução: a incerteza presente na ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a possibilidade de cautela diante da incerteza científica, mudança temporal da ação, observância universal do princípio, proporcionalidade de atuação dos Estados. Há ainda outra característica que, apesar de não estar expressa na citada definição do princípio da precaução, merece destaque, diante da sua importância. Trata-se da questão do ônus probatório.
Passar-se-á agora a descrever essas características a fim de identificar os principais aspectos que envolvem o princípio da precaução.
3.2.1 Danos Sérios ou Irreversíveis
Primeiramente, é importante pontuar a forma como nos posicionamos em relação ao risco. Segundo a teoria de Ulrick Beck vive-se em uma "sociedade de risco". Isto significa que a sociedade tolera alguns danos. Explica Leite que "diuturnamente danos ocorrem e o homem não consegue se dar conta de que eles existem. Subjugou-se como um todo a segurança do planeta". Expõe também que o homem consegue visualizar apenas riscos concretos, mas não os riscos abstratos, os quais estão acima da sua racionalidade.Diante, então, da contínua geração de riscos ambientais que a humanidade provoca, a precaução surge como um meio para gerenciar os riscos envolvidos, em especial aqueles cuja falta de conhecimento presente leva a uma incerteza sobre suas consequências futuras.Com vistas, assim, a caracterizar os aspectos que envolvem o princípio da precaução, o princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, bem como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima e outras declarações e tratados estabeleceram como um dos parâmetros para determinação das circunstâncias que tornam obrigatória a aplicação da precaução a gravidade do dano envolvido, delimitando que deve haver uma ameaça de danos sérios ou irreversíveis.A atuação das políticas públicas e ações humanas na aplicação do princípio da precaução passaram, dessa maneira, a ser fixadas a partir da gravidade do dano em questão, considerando-se como irreversibilidade a impossibilidade do meio de retornar ao seu estado anterior.Controvertida, entretanto, é o entendimento acerca da definição de gravidade do dano. Para alguns doutrinadores a aplicação prática do princípio torna-se difícil em razão disso, podendo variar caso a caso. Sampaio explica que essa dificuldade decorre da noção de risco sofrer variações nas diversas culturas e inclusive dentro de um mesmo cenário cultural Wold também concorda quanto à problemática decorrente das diferenças culturais na percepção de riscos ambientais. Em contrapartida, o próprio Wold defende que os "contornos da noção de impacto ambiental significativo já se encontram perfeitamente delineados nos processos de adoção de medidas de política ambiental, oferecendo um critério de avaliação suficiente para que os tribunais possam aplicar o princípio da precaução". Baseia sua afirmação no fato de que a maioria dos países utiliza o estudo de impacto ambiental (EIA) como instrumento de aferição antecipada dos riscos envolvidos em empreendimentos que interfiram no meio ambiente.
3.2.2 Incerteza Científica
Uma outra característica do princípio da precaução traduz-se no entendimento de que a ausência de absoluta certeza científica não pode justificar adiamento de medidas para evitar a degradação ambiental. Este parâmetro definido para a utilização do princípio da precaução nos casos concretos fundamenta-se na ideia de que a incerteza do conhecimento científico sobre o perigo ou mesmo a falta de consenso científico sobre os riscos envolvidos nas atividades humanas não podem justificar omissões quanto à proteção do meio ambiente. Como reflexo desse posicionamento introduzido pelo princípio da precaução na defesa ambiental, a "ação positiva com vistas a proteger o meio ambiente pode ser requerida sem que provas científicas do dano tenham sido apresentadas". A partir disso, como bem explica Sampaio, o sentido da racionalidade moderna, baseado no desenvolvimento das técnicas de domínio da natureza, foi questionado em prol da precaução contra danos ambientais. Assim, aplica-se o princípio diante da incerteza, responsabilizando-se a sociedade inclusive sobre o que desconhece e deveria ser prudente em relação aos efeitos. Segundo Machado, a grande inovação do princípio da precaução foi justamente a possibilidade de se agir prevenindo mesmo diante da incerteza. Pontua que "a dúvida científica, expressa com argumentos razoáveis, não dispensa a prevenção". Nardy explica que a pesquisa científica possui um papel de suma importância na identificação das ameaças ou riscos ambientais, mas também acrescenta que, mesmo quando não sejam encontradas evidências causais conclusivas, deve-se agir prevenindo. Da mesma forma, Varella e Platiau afirmam que o papel da comunidade científica foi valorizado a partir do princípio da precaução, visto que a ela incumbe o fornecimento de "dados e provas para que o princípio da prevenção não seja o único instrumento jurídico de antecipação de danos ambientais". Asseveram ainda os mesmos autores que um dos principais efeitos do princípio da precaução foi "reduzir a importância da certeza científica como fator inibidor de novas legislações para, ao mesmo tempo, aumentar a responsabilidade de autoridades públicas e atores privados quanto à avaliação de impactos ambientais".Destaca-se que o debate ainda persiste quanto ao grau de incerteza científica necessário para a adoção de medidas de precaução. Por isso, a questão relacionada à quantidade necessária de informações para a tomada de decisões sobre a aplicação do princípio continua em aberto.
Apesar disso, ressalta-se que no momento de ponderação entre o grau de ameaça de dano e o grau de incerteza científica presentes no caso concreto, quando o dano é considerado muito grave, percebe-se um relaxamento nas exigências de plausibilidade da ocorrência, enquanto nas situações em que a ameaça não é considerada grave, há um aumento do grau de exigência de certeza científica para ensejar a obrigatoriedade de medidas de precaução.
3.2.3 Mudança Temporal da Ação
A ação privilegiada até a inserção do princípio da precaução no ordenamento internacional era a reparatória. O foco estava em se atuar após a verificação do dano. No entanto, o princípio da precaução, inversamente, exige uma atuação prévia, baseada na cautela, com o objetivo de evitar o dano. Como decorrência, ações para prevenir a destruição ambiental não devem ser postergadas.
Medidas eficazes em relação ao tempo de atuação passaram, então, a ser exigidas. Pois do contrário, por exemplo, qual seria a eficácia de uma ação para reparar o habitat dos micos leões dourados quando a espécie já estivesse extinta? O tempo não permitiria mais a medida. O passado teria vencido a ação presente. Por isso, as atitudes de hoje devem estar voltadas para o futuro, porque muitas vezes ações postergadas podem ser ineficazes para a proteção dos bens ambientais. O meio ambiente necessita, portanto, de políticas públicas e ações imediatas para garantir a sua sobrevivência.A precaução atua, assim, como um meio de gestão da espera da informação necessária para se conhecer quais os reais riscos envolvidos nos empreendimentos humanos, garantindo a ação presente, em tempo oportuno, a proteção ambiental e da saúde humana, enquanto o conhecimento científico se desenvolve. Desse modo, entende-se que in dubio pro natura, ou seja, na dúvida diante da incerteza, deve-se agir em favor da natureza, evitando-se ações precipitadas e esperando-se, consequentemente, para agir no tempo certo. Elucida Ulrick Beck:
(...) Do outro lado, a verdadeira força social do argumento do risco reside justamente nos perigos que se projetam para o futuro. Na sociedade de risco, o passado perde sua função determinante para o presente. É o futuro que vem substituí-lo e é, então, alguma coisa de inexistente, de construído, que se torna a ‘causa’ da experiência e da ação no presente". (Grifou-se).
3.2.4 Observância Universal do Princípio
A obrigatoriedade conjunta de todos os países do planeta Terra em preservar o meio ambiente decorre da sua própria natureza intrínseca, visto que não há como se desmembrar os bens ambientais, dando-lhes fronteiras, pois a sua sobrevivência depende de um sistema global.
Danos ambientais podem provocar efeitos em todo o planeta, independentemente de onde sejam produzidos. A emissão de poluentes ao ar atmosférico, onde quer que ocorra, por exemplo, gera alterações climáticas que serão sentidas globalmente. Da mesma forma, a degradação da Floresta Amazônica causa danos ambientais de dimensões transfronteiriças, atravessando os seus próprios limites territoriais.
Por essa razão, medidas eficazes para a preservação ambiental dependem de uma observância universal do princípio da precaução, sem exceção, pois todos os países habitam o mesmo planeta e dependem da mesma fonte de vida.
3.2.5 Proporcionalidade de atuação dos Estados
Como expõe o princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento "medidas eficazes e economicamente viáveis" devem ser adotadas para a proteção ambiental. A partir disso, reconhecem-se tanto a obrigatoriedade da aplicação de medidas eficazes para prevenir ou mitigar possíveis impactos negativos ao meio ambiente, quanto a proporcionalidade da atuação dos Estados, decorrente de suas capacidades, expressas através dos custos envolvidos e da viabilidade econômica de cada país, região ou local para a sua implementação. Consequentemente, "as medidas adequadas podem variar conforme estejam sendo adotadas por um país desenvolvido ou por um país em desenvolvimento, ajustando-se aos respectivos contextos socioeconômicos". De acordo com afirmação de Wold, os tribunais já se encontram aptos a adotar o parâmetro relacionado à capacidade dos Estados, o que pode ser demonstrado pelas decisões já proferidas em diferentes países. Cita como exemplos um caso na Austrália, segundo o qual se decidiu pela alteração do traçado de uma rodovia para evitar a interferência no habitat de uma espécie de sapo ameaçada de extinção, enquanto numa questão no Paquistão, referente à insuficiência de estudos sobre a viabilidade ambiental da construção de uma linha de transmissão de alta voltagem, optou-se pela formação de uma comissão para avaliar melhor a dimensão dos riscos à saúde humana como medida de atuação prévia à autorização da implantação da linha.
3.2.6 Ônus Probatório
De acordo com este aspecto do princípio da precaução, o interessado em realizar um empreendimento que provoque riscos de degradação ambiental deve provar que a sua atividade não causará ameaças ao bem ambiental. Estabelece-se, assim, uma distribuição do ônus da prova. Não se trata, especificamente, de uma inversão do ônus probatório, a despeito desta nomenclatura ser muito utilizada, vez que o ônus incumbido ao potencial poluidor é prévio à sua ação, devendo ser feito como pré-requisito para a implantação da atividade. A distribuição do ônus da prova do risco ambiental assume, portanto, um caráter material, baseada em uma atitude em prol da natureza e da sociedade diante da dúvida. Nesse sentido, aquele que pretende se beneficiar de uma ação prejudicando a uma maioria deve arcar com o ônus antecipado de demonstrar a viabilidade ambiental de seu empreendimento. Instrumentos como o estudo de impacto ambiental para a autorização de uma obra ou atividade que apresente riscos ambientais, exigido em países como o Brasil e a Austrália, bem como o procedimento de justificação prévia, existente nos EUA, constituem exemplos de medidas que preconizam a precaução através da inversão do ônus probatório.
4. O Princípio da Precaução no Ordenamento Jurídico Brasileiro
O artigo 4º, em seus incisos I e IV, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981), traça como objetivos da política nacional do meio ambiente a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico, bem como o desenvolvimento de pesquisas e de tecnologias nacionais orientadas para o uso racional de recursos ambientais. Da mesma maneira, seu artigo 9º, III, destacou como instrumento dessa política a avaliação de impactos ambientais. Inseriu-se, dessa forma, a prevenção no ordenamento jurídico brasileiro.
Em 1986, a fim de definir as diretrizes gerais para a avaliação de impactos ambientais, editou-se a Resolução 1/86 do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente), a qual estabeleceu, em seu art. 6º, II, o seguinte:
Art. 6º O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
(. . .)
II – análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição do ônus e benefícios sociais.
Igualmente, a Constituição Federal de 1988, no art. 225, caput, definiu como direito de todos o "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (grifou-se). Estabeleceu, assim, tanto o direito como o dever de usufruir e preservar o meio ambiente.
Além disso, a Constituição Federal, através do art. 225, § 1º, determinou diversas e fundamentais formas, sob a responsabilidade do Poder Público, de assegurar a efetividade do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, dentre as quais se destaca a exigência de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ambiental (inciso IV). Nesse sentido, ressalta Machado que "a palavra potencialmente abrange não só o dano de que não se duvida, como o dano incerto e o dano provável".
Outrossim, o art. 225, § 1º, da Constituição Federal incumbiu ainda ao Poder Público proteger a fauna e a flora, vedando práticas que coloquem em risco sua função ecológica (inciso VII), assim como controlar a produção comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (inciso V). Assevera-se, portanto, o valor dado pelo legislador constitucional para a necessidade de cautela quanto aos riscos de danos ao meio ambiente e à saúde humana.
Através da ratificação pelo Poder Legislativo, entrada em vigor e posterior promulgação pelo Brasil da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças do Clima e da Convenção da Diversidade Biológica, o princípio da precaução foi definitivamente incorporado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Ressalta-se também que o Brasil aderiu à Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e que, "embora não mandatórios, os princípios emanados da Declaração do Rio de 1992 sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, são, segundo Trindade (apud Mirra, 2001), juridicamente relevantes e não podem ser ignorados pelos países na ordem internacional, nem pelos legisladores, pelos administradores públicos e pelos tribunais na ordem interna. Assim, o princípio da precaução é um dos princípios gerais do direito ambiental brasileiro, integrante do nosso ordenamento jurídico".
A Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais) também adota o princípio da precaução, dispondo de forma expressa em seu artigo 54, § 3º, que "incorre nas mesmas penas previstas no parágrafo anterior quem deixar de adotar, quando assim o exigir a autoridade competente, medidas de precaução em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível".
Da mesma forma, a jurisprudência nacional tem afirmado o princípio da precaução em diversas decisões, como pode ser vislumbrado através das ementas abaixo transcritas:
Agravo de instrumento. Ação civil pública. Liminar para cessação de atividade nociva ao meio ambiente. Liminar impondo prazo a empresa de fabricação de rações animais para cessação de atividade poluente, sob pena de multa diária, arrimada em veementes elementos de convicção coletados em inquérito civil público. Decisão que se justifica cabalmente, tanto pelos fatos nela considerados, quanto pelo direito aplicável (art. 12 da Lei 7.347/85). Prevalência do princípio da precaução, dada a freqüente irreparabilidade do dano ambiental. Agravo desprovido.
Embargos de declaração – pedido para ser agregado efeito infringente ao recurso – inexistência no caso concreto de situação excepcional que permita a pretendida substituição da decisão por outra que acolha as teses da embargante – omissões apontadas que não se ostentam – acórdão que, aplicando o princípio da precaução, entendeu como imprescindível a dilação probatória com ampla discussão entre as partes, impedindo a pretendida demolição de prédios definidos como de valor cultural e histórico, em fundamentação suficiente para a solução da lide. Embargos desacolhidos.
Embargos infringentes. Administrativo. Ação civil pública. Construção de hotel. Promontório. Área de preservação permanente. Estudo de impacto ambiental. Imprescindibilidade. Demolição da obra. Licenças indevidas. Boa fé.
- A necessidade do estudo de impacto ambiental não é indispensável, ao revés, sua imprescindibilidade é marcante. Na hipótese, evidente a precariedade das licenças concedidas, diante da necessidade do estudo prévio de impacto ambiental na área em questão.
- O fato de que dispensado tal estudo em razão de que implantada grama na área aplainada de solo argilo-arenoso, descaracterizada a vegetação remanescente por ocupações anteriores, bem como porque na frente do terreno foi construído aterro hidráulico por obra do Poder Público, além da estrada que liga Porto Belo a Bombinhas, não afastam a necessidade de tal estudo e nem tampouco motivam a dispensa efetivada pela FATMA.
- O ora embargante procedeu ao início das obras amparado em licenças fornecidas por órgão estadual e municipal, firme e convicto na legalidade e na veracidade de tais documentos públicos; dispendeu recursos financeiros e esforços no sentido de concretizar empreendimento hoteleiro de sua titularidade, agindo de boa fé, descabido, pois, que, julgada indevida a licença, arque com custos inerentes à demolição daquilo que construído, repito, após a obtenção das autorizações havidas à época pertinentes e suficientes.
5. Considerações Finais
O princípio da precaução surgiu como uma forma de encontrar um meio de gestão dos riscos que possam causar a degradação ambiental ou afetar a saúde humana. Sua aplicação deve ocorrer em casos de incerteza científica quando exista a possibilidade da ocorrência de danos ambientais graves.
Diante, portanto, da "cultura do risco" na qual vive a sociedade contemporânea, em que a precipitação e a indiferença em relação à criação de ameaças a bens alheios, públicos, tais quais os bens ambientais, acontecem diuturnamente, seja através de atitudes individualmente consideradas, seja através da ação de grandes empresas ou do governo, convém a reflexão sobre até quando se continuará assim. Significa dizer: até quando se arriscará a existência da espécie humana e do planeta em favor de valores baseados no consumo desmedido presente na atualidade?
Resta como alternativa uma mudança de comportamento fundada em um questionamento constante quanto às necessidades efetivas para a vida. O que é realmente importante? Quantos têm essa necessidade? O que define a imprescindibilidade? É preciso, por exemplo, esperar anos para descobrir os efeitos que alimentos geneticamente modificados ou as radiações eletromagnéticas produzidas por aparelhos celulares causam à saúde humana? É preciso aguardar que o clima do planeta seja bastante alterado para somente depois tentar agir?
Propõe Sampaio que a lógica do risco deve ser invertida. Expressa:
Mas antes mesmo de se aventar sobre as possibilidades dos riscos, deve-se indagar sobre a necessidade efetiva da atividade. "É, de fato, necessária"? Propostas alternativas são o passo seguinte. Certo que também aqui ronda uma grande imprecisão. "Necessária para quem"? "O que é necessário"? O entorno de um parque nacional preservado e imune à ocupação è mais necessário do que um entorno explorado por redes hoteleiras? A resposta não é fácil. A definição da necessidade passa necessariamente por uma construção intersubjetiva e por uma justa adequação dos interesses envolvidos. O que não se pode é partir do risco para avaliar a viabilidade socioambiental de um empreendimento. Como acentua Derani, a base da precaução é a necessidade, por mais tormentosa que seja sua identificação.
Nesse mesmo entendimento, asseverando a finalidade de determinada atividade como premissa para a utilização do princípio da precaução, expõe Winter, apoiado por Machado:
A participação do Poder Público não se direcionaria exatamente à identificação e posterior afastamento dos riscos de determinada atividade. À pergunta ‘causaria A um dano?’ seria contraposta a indagação ‘precisamos de A?’. Não é o risco, cuja identificação torna-se escorregadia no campo político e técnico-científico, causado por uma atividade que deve provocar alterações no desenvolvimento linear da atividade econômica. Porém, o esclarecimento da razão final do que se produz seria o ponto de partida de uma política que tenha em vista o bem-estar de uma comunidade. No questionamento sobre a própria razão de existir de uma determinada atividade colocar-se-ia o início da prática do princípio da precaução[55].
Por outro lado, não se trata de advogar uma política de risco zero, mas apenas de se dar a "devida importância à proteção da saúde pública e do meio ambiente sempre que o número de informação científica disponível for insuficiente para uma segura tomada de decisão"[56]. Assim, sua aplicação não visa imobilizar as atividades humanas, mas sim proporcionar "a durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente no planeta"[57].
Destarte, em discussão acerca da utilização da prudência e do princípio da proporcionalidade no confronto entre os princípios do Direito Ambiental e tantos outros existentes, complementa Baggio: "Para isso, entretanto, é necessário que haja uma mudança radical na postura dos operadores do dirieto (sic), o que ainda vai demorar um tempo p/ acontecer. Só vamos ter operadores do direito em condições de tratar as questões ambientais com prudência quando estiverem conscientes da finitude dos recursos naturais, da irreversibilidade de algumas intervenções humanas, da indisponibilidade de alguns recursos já nos dias atuais, etc[58]".
Enfim, independentemente do que conhecemos hoje, o meio ambiente deve ser protegido, por isso a cautela deve ser observada mesmo diante das incertezas.
Retoma-se, por fim, a mudança de paradigma proposta inicialmente para se ponderar, a partir da prudência e da cautela, quais as nossas reais necessidades e interesses envolvidos diante das incertezas que podem gerar danos potenciais ao meio ambiente e à saúde humana, de modo a redirecionar a perspectiva comportamental da sociedade e jurídica para um direito precavido, em busca de uma racional e efetiva compatibilização entre um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a sadia qualidade de vida e o desenvolvimento econômico e social sustentável para o planeta Terra.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

O DESAFIO DO TRABALHO INFANTIL (Cléa Carpi da Rocha, 14/06/2010)

"Completa este mês 11 anos o importante instrumento de direitos humanos para a erradicação do trabalho infantil, a Convenção (Convênio) 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Recomendação 190 para Ação Imediata para a sua Eliminação. E o dia 12 é lembrado como o Dia Mundial e Nacional de Combate ao Trabalho Infantil. A Convenção foi fruto de uma longa, mas firme caminhada de mobilização mundial, com destaque para a Marcha Global contra o Trabalho Infantil integrada por milhares de crianças de todas as partes do mundo, até chegar-se a um consenso. O momento em que meninos e meninas, todos de mãos dadas, com cartazes e sorrisos de acolhida estampados nos rostos, penetraram no recinto da OIT, encerrando a marcha, em plena sessão dos trabalhos em que estavam os delegados dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores de cada Estado-membro, foi um acontecimento único e por certo ficará na memória da história daquela organização e no coração de todos os que dela participaram.As novas normas internacionais concedem prioridade a uma ação imediata para pôr fim à exploração das crianças e dos adolescentes que realizam trabalhos perigosos, em regime de escravidão ou de servidão, ou submetidos à prostituição ou à pornografia, ou que pela natureza e condições em que o trabalho é efetuado causem-lhes danos à saúde, à seguridade ou à moralidade, práticas essas que os afetam em todo o mundo com dolorosas consequências. Elas se inserem no grande leque dos instrumentos internacionais de proteção, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU), o Convênio sobre o Trabalho Forçado e o convênio sobre a idade mínima de admissão ao emprego, com a sua recomendação, da OIT, e a convenção suplementar das Nações Unidas sobre a abolição da escravidão, o tráfico de escravos e as instituições e práticas análogas à escravidão.Muito embora a Convenção 182 encontre-se vigente no Brasil há 10 anos, preocupa e assusta que nosso país ainda apresente quase 5 milhões de crianças que trabalham, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E vamos encontrá-las em núcleos familiares pendentes de condições ínfimas de existência, com moradias em estado precário e sem saneamento básico, com crianças sendo obrigadas a trocar a escola pelo trabalho para aumentar a vil renda familiar. A pobreza econômica traz consigo a pobreza cultural. O mercado informal de trabalho das crianças e o êxodo da escola marcham juntos.A Constituição cidadã e o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelecem que tanto a infância quanto a família não são mais objetos de medidas, mas sujeitos de direitos. É tarefa do Estado e dever de todos e das entidades civis e públicas preservar a infância, preservando-lhe a família".

sábado, 12 de junho de 2010

O ESPÍRITO NA ALMA DAS LEIS


Montesquieu é um dos grandes filósofos do século XVIII. Pensador iluminista,deixou uma grande herança por meio de suas obras. "Para melhor compreensão, desta obra, é preciso que se observe que o que denomino virtude na república é o amor à pàtria, isto é, o amor à igualdade. Não é, em absoluto, virtude moral, nem virtude cristã, e sim virtude política; é a mola que faz mover o governo republicano, assim como a honra é a mola que faz mover o governo a monarquia".

Primeira Parte

Livro Primeiro


Das leis em geral



I : Das leis quanto às suas relações para com os diversos seres

As leis, no seu significado mais amplo, são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas; e, nesse sentido, todos os seres têm suas leis; a divindade tem suas leis, o mundo material tem suas leis, o homem tem suas leis.
Livro Segundo
Das leis que derivam diretamente da natureza do governo

I : Da natureza de três diferentes governos

Existem três espécies de governo:
O republicano;
O monárquico;
O despótico
II : Do governo republicano e das leis relativas à democracia

Quando, em república, o povo, formando um só corpo, tem o poder soberano, isso vem a ser uma democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma aristocracia.
III : Das leis relativas á natureza da aristocracia

Na aristocracia, o poder soberano acha-se nas mãos de um certo número de pessoas. São elas que fazem as leis, e as fazem executar.
IV : Das leis em sua relação com a natureza do governo monárquico

Os poderes intermediàrios, subordinados e dependentes, constituem a natureza do governo monárquico, isto é, daquele em que um só governa baseado em leis fundamentais.
V : Das leis relativas à natureza do Estado despótico

Resulta da natureza do poder despótico que o único homem que o exerce o faça também exercer por um só.
Livro Terceiro
Dos princípios dos três governos

I : Diferença entre a natureza do governo e seu princípio

Depois de Ter examinado quais são as leis relativas à natureza de cada governo, cumpre saber quais são as que são relativas a seu princípio.
Livro Quarto
De como as leis da educação devem ser relativas aos princípios do governo

I. Das leis da educação

As leis da educação são as primeiras que recebemos. E, como elas nos preparam para sermos cidadãos, cada família particular deve ser governada em conformidade com o plano da grande família que compreende todas as demais.
Livro Quinto
De como as leis que o legislador decreta devem ser relativas aos princípios do governo

I : Idéia deste livro

Acabamos de verificar que as leis da educação devem ser relativas ao princípio de cada governo, e também devem obedecer a esse princípio as que o legislador promulga para toda a sociedade. Iremos examinar essa relação em cada governo, começando pelo Estado republicano, que tem a virtude por princípio.
III : Do que é o amor pela república, em uma democracia

O amor pela república, em uma democracia, consiste no próprio amor à democracia; e o amor da democracia é o amor pela igualdade.
Livro Sexto
Consequências dos princípios dos diversos governos em relação à simplicidade das leis civis e criminais, a forma dos julgamentos e ao estabelecimento das penas.


Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu, autor de "O Espírito das Leis".I : Da simplicidade das leis civis nos diversos governos

O governo monárquico não comporta leis tão simples quanto o despótico. São necessários tribunais. Esses tribunais proferem decisões. Estas devem ser conservadas, estudadas, para que hoje se julgue como ontem se julgou, e para que a vida e a propriedade dos cidadãos conservem-se asseguradas como a própria constituição do Estado.
Livro Sétimo
Consequência dos diferentes princípios dos três governos em relação às leis suntuárias, ao luxo e à condição das mulheres

I : Do luxo

O luxo é sempre proporcional à desigualdade das fortunas. Se em um Estado, as fortunas estiverem igualmente distribuídas, não existirá o luxo, pois este é fundado sobre as comodidades que se usufruem pelo trabalho alheio.
XVII : Da administração das mulheres

É contra a razão e contra a natureza que as mulheres seja dirigentes na casa, tal como se estabeleceu entre os egípcios; no entando, não o é que elas governem um império
Livro Oitavo
Da corrupção dos princípios nos três governos

I : Idéia geral do livro

A corrupção de cada governo começa quase sempre pela corrupção dos princípios.


Segunda Parte

Livro Nono
Das leis em sua relação com a força defensiva

I : De como as repúblicas mantêm a própria segurança

Se uma república for pequena, será destruída por uma força estrangeira; se for grande, destrui-se-à ela própria por um vício interno.
Livro Décimo
Das leis em sua relação com a força ofensiva

I : Da força ofensiva

A força ofensiva é regulada pelo direito das gentes, o qual é a lei política das nações, consideradas quanto às relações que elas mantêm entre si.
Livro Décimo Primeiro
Das leis que formam a liberdade política quanto à sua relação com a constituição

I : Idéia Geral

Estabeleço distinções entre as leis que formam a liberdade política quanto à sua relação com a constituição, e aquelas que a formam em relação ao cidadão.
Livro Décimo Segundo
Das leis que formam a liberdade política na sua relação com o cidadão

I : Idéia deste livro

Não basta haver tratado da liberdade política em sua relação com a constituição; cumpre apresentá-la sob o ponto de vista da relação que ela mantém com o cidadão.
II : Da liberdade do cidadão

A liberdade filosófica consiste no exercício da própria vontade ou, pelo menos (se aludirmos a todos os sistemas), na opinião que se tem do exercício da vontade. A liberdade política consiste na segurança, ou pelo menos na opinião que cada um tem de sua segurança.
Livro Décimo Terceiro
Das relações que a arrecadação dos tributos e a soma das rendas têm com a liberdade

I : Das rendas do Estado

As rendas do Estado são uma porção que cada cidadão dá de seu bem para fazer jus à segurança da outra porção, ou para que dela possa desfrutar agradavelmente.

Terceira Parte

Livro Décimo Quarto
Das leis quanto à sua relação com a natureza do clima

I : Idéia Geral

Se é verdade que o caráter do espírito e as paixões são extremamente diversos nos diferentes climas, as leis devem ser relativas à diferença dessas paixões e à diferença desses caracteres.
Livro Décimo Quinto
De como as leis da escravidão civil relacionam-se à natureza do clima

I : Da escravidão civil

A escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem de tal forma dependente de um outro, que este se torna o senhor absoluto de sua vida e de seus bens. A escravidão não é boa por sua natureza; não é ùtil nem ao senhor nem ao escravo.
Livro Décimo Sexto
De como as leis da escravidão doméstica se relacionam à natureza do clima

I : Da servidão doméstica

Os escravos são estabelecidos mais para a família do que na família. Distinguirei, portanto, sua servidão daquela em que se encontram as mulheres de alguns países, à qual denominarei, mais propriamente, de servidão doméstica.
Livro Décimo Sétimo
De que modo a servidão política se relaciona com a natureza do clima

I : Da servidão política

A sevidão política não depende menos da natureza do clima do que da civil e da doméstica, como iremos demonstrar.
Livro Décimo-Oitavo
Das leis quanto às suas relações com a natureza do solo

I : De que maneira a natureza do solo influi sobre as leis

A fertilidade das terras de um país estabelece naturalmente dependência. Os camponeses, que constituem a maior parte do povo, não são muito ciosos da própria liberdade: estão sempre muito ocupados e preocupados com os seus afazeres particulares.
Livro Décimo-Nono
Das leis quanto às suas relações com os princípios que formam o espírito geral, os costumes e as maneiras de um povo

I : Do assunto deste livro

Esta matéria é muito extensa. Nessa infinidade de idèias que se apresentam a meu espírito, mostrar-me-ei mais atento à ordem das coisas do que às próprias coisas. É preciso que eu afaste à direita e à esquerda, que pesquise e consiga esclarecer-me.


Quarta Parte

Livro Vigésimo
Das leis em sua relação com o comércio, considerado em sua natureza e em suas distinções

Invocação às musas

Virgens do Monte Piério, ouvis o nome que vos dou? Inspirai-me. Percorro um longo caminho; encontro-me acabrunhado por tristeza e tédio. Dai ao meu espírito esse encanto e essa doçura que eu outrora sentia e que fogem de mim. Vós nunca sois tão divinas como quando, pelo prazer, conduzis à sabedoria e à verdade.
Livro Vigésimo Primeiro
Das leis no que concerne ás suas relações com o comércio, relativamente às modificações pelas quais este passou.

I : Algumas considerações gerais

A despeito estar o comércio sujeito a grandes modificações, pode ocorrer que certas causas físicas, a qualidade do terreno ou do clima, determinem para sempre a sua natureza.
Livro Vigésimo Segundo
Das leis em sua relação com o uso da moeda

I : Razão do uso da moeda Os povos que têm poucas mercadorias para o comércio, como os selvagens, e os povos civilizados que as possuem somente de duas ou três espécies, negociam por troca. Dessa forma, as caravanas de mouros que vão a Tombuctu, no coração da África, trocam sal por ouro e não precisam de moeda.

* Livro Vigésimo Terceiro Das leis quanto à sua relação com o número de habitantes

I : Dos homens e dos animais em relação à multiplicação de sua espécie


Quinta Parte

Livro Vigésimo Quarto
Das leis na sua relação com a religião estabelecida em cada país, considerada em suas práticas e em si mesma.

I : Das religiões em geral

Assim como se podem julgar entre as trevas aquelas que são as menos espessas, e entre os abismos aqueles que são os menos profundos, assim também se podem procurar entre as religiões falsas as que são mais conformes ao bem da sociedade: as que, embora não tenham como resultado conduzir os homens para as felicidades da outra vida, possam contribuir mais para a sua felicidade nesta.

Sexta Parte


Livro Vigésimo Sétimo
Das origem e das transformações das leis dos romanos sobre as sucessões

Cápítulo único

Esta matéria prende-se a estabelecimentos de uma antiguidade muito remota; e, para penetrá-la a fundo, seja-me permitido procurar nas primeiras leis dos romanos o que eu não sei se foi visto até hoje. É sabido que Rômulo repartiu as terras de seu pequeno Estado entre seus cidadãos; parece-me que é daí que derivam as leis de Roma sobre as sucessões.


sexta-feira, 11 de junho de 2010

ALTERNATIVAS PARA O DIREITO


Alguns ainda acreditam que o juiz, tão-só por formação e dedicação, possa ser o redentor da crise brasileira.
A crise social é a situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade.
A sociedade brasileira está em crise e é crítica. Resta-nos o consolo de suspei­tar que o seu desenvolvimento só possa decorrer de um processo crítico: felizmente está em crise, pois pior seria se permanecesse infensa ao turbilhão de conflitos que carrega em seu seio.
São vertentes da crise brasileira.
a) no plano sócio-econômico, a crise de hegemonia dos setores dominantes, ir­responsavelmente atrelados ao intuito predatório, herdado do período colonial;
b) no plano político, a crise de legitimação do regime democrático representa­tivo, evidenciada pela pouca credibilidade da classe política; e,
c) no plano jurídico-institucional, a crise da matriz organizacional do Estado, que viu esgotada a capacidade de imposição de seu modelo centralizador e corpora­tivo, cooptador e concessivo, intervencionista e atomizador quer dos conflitos sociais, quer das contradições econômicas.
Crise implica em crítica e em julgamento, mas a segurança no julgamento de­corre da certeza de percepção da realidade, o que parece impossível pela própria ins­tabilidade da situação.
Daí porque surgem as contradições no estabelecimento de estratégias que pos­sam vencer a própria crise: tais contradições estão na sociedade e permeiam o produ­to do esforço social, como, por exemplo, a própria Constituição de 1988.
Produto da sociedade, elaborada em longo e tumultuado processo constituinte, a Carta da República não pode deixar de conter as contradições do poder que a ela­borou.
Com o idêntico fervor do fiel ao proclamar o "vade retro, Satanás", procure­mos exorcizar a tentação de exigir que a Constituição, pelo mágico fetichismo de sua expressão gráfica, seja a redenção da sociedade, sobranceira às forças que a criaram, em olímpica neutralidade:
"A Constituição, legitimada pela aceitação da maio­ria, não é só um fenômeno restrito ao interesse dos juristas: antes de ser o Código Político, é o estuário em que se precipi­tam as dúvidas, as crises, os sonhos e a realidade de toda a sociedade.
A Constituição é a criatura cujo criador, consciente de suas imperfeições, tenta mudar a História, aspirando a um ato tão perfeito que suplante seus caracteres humanos.
Depositam-se na nova Constituição todas as esperan­ças.
Dela se pretende que, em um só mágico movimento, o destino seja alterado pela libertação de todas as cadeias; nela suspeitam-se as artimanhas do inimigo e escamoteiam-se os pecados que refletem a própria alma - alguns apenas vislum­bram os próprios direitos e privilégios, esquecidos de que os mesmos só existem porque todos temos deveres e obrigações.
Ela não é somente uma neutra enumeração dos ór­gãos públicos, fins do Estado, direitos e deveres individuais e coletivos ou um nebuloso programa de atuação - o que nela importa, prepondera sobre todas as outras facetas, é o modo de funcionamento, pelo qual se realiza, transforma a reali­dade e cumpre o fim esperado.
O aspecto funcional da Constituição, no entanto, nela não se esgota, pois encontra seus limites nas instituições que por ela são reconhecidas e nos homens que, embora não os possa escolher, com ela devem conviver. A Constituição somos nós."
A contradição sócio-econômica da Constituição está na sua própria essência.
De um lado, saudosa do modelo de Estado-absenteísta e correspondendo ao re­crudescimento mundial do sistema de livre-empresa, intenta garantir o status quo pela inócua afirmação do indivíduo perante as forças sociais, reservando-lhe uma área de atuação infensa ao poder público, através da proclamação dos direitos libe­rais, algumas vezes denominados "liberdades". Tais direitos têm, por conteúdo, a re­serva ao indivíduo de uma área livre de atuação, intangível ao poder, como se vê no princípio da irretroatividade da lei, a garantia do direito de propriedade, a liberdade da atividade comercial e produtiva etc.
O individualismo filosófico, e suas derivações, o liberalismo político e o capita­lismo econômico, todos pressupõem a igualdade dos integrantes da sociedade. Por outro lado, aspirando a eliminação, ainda que lenta e gradual, da discri­minação social (art. 3º), a Constituição institui mecanismos de transformação pela proclamação de direitos de atendimento às necessidades diárias e permanentes, cor­respondendo a um programa para fazer e conservar a igualdade entre os membros da sociedade política, no dizer de Pontes de Miranda. Os direitos "sociais" (art. 6º) ou "novos direitos", têm o conteúdo positivo de prometer prestação de serviço público concreto e divisível: educação, saúde, justiça, lazer, trabalho e outros; decorrem da desigualdade, natural ou criada, existente entre os seres sociais e ensejaram, de al­guns, a crítica de ser a Constituição "utópica-idealista".
A contradição política da Constituição está no dilema entre os modelos de de­mocracia representativa (ou indireta) e direta (por alguns chamada "participativa").
O art. 1º, parágrafo único, proclama a nossa democracia mista, em que pre­domina o modelo representativo, pois diz que, em regra, cabe ao representante eleito o exercício do poder, ficando as formas de participação restritas à previsão constitu­cional.
A democracia indireta é instrumento do liberalismo e visa permitir a predomi­nância do interesse majoritário (ao menos do ponto de vista eleitoral) na tomada da decisão; a democracia direta assegura a dispersão do poder decisório entre órgãos es­tatais, entidades da sociedade civil e cidadãos.
A contradição jurídico-institucional da Constituição decorre do reconhecimen­to do fato da dispersão do poder do Estado, cujo centralismo autoritário correspondia às necessidades do Estado colonial mas hoje é incompatível com a legitimidade do exercício do poder. Daí porque a Constituição, cada vez mais, prevê a existência de núcleos setoriais de poder, assegurando autonomia a entes públicos, nem sempre es­tatais: sindicatos, universidades, Ministério Público, Poder Judiciário, partidos polí­ticos, corporações profissionais e entes de produção econômica.
[5]
Responsável primário pela aplicação do Direito e, assim, o primeiro assegura­dor da eficácia constitucional, o juiz está neste turbilhão de contradições.
O juiz defronta-se com os efeitos da crise sócio-econômica ao tentar resolver causas que decorrem das mazelas sociais, em país de dimensões continentais e classes sociais nitidamente diferenciadas; aí constata que o brocardo "dar a cada um o que é seu" não se aplica quando inexiste distribuição justa das rendas, o que mais se agrava pelo processo inflacionário crônico, a punir excessivamente o assalariado.
As crises política e institucional não passam ao largo do Judiciário, que, cada vez mais, julga causas transindividuais, na ótica da defesa de direitos públicos, difu­sos e coletivos, quando o autor se legitima extraordinariamente para defender, em nome próprio, relevantes interesses comuns a grupos ou a toda a comunidade.
A matéria de trabalho do juiz é o conflito, que é a oposição e a luta entre dife­rentes forças.
Mais avulta o papel do juiz, neste contexto, pelo fato de que nosso sistema ju­rídico-constitucional praticamente não lhe interditou, ao menos formalmente, qual­quer área de atuação.
Pouquíssimos sistemas jurídicos exigiram tanto do juiz, em verdadeira univer­salidade de cognição.
Perante a Toga, submetem-se o indivíduo, os grupos sociais organizados, o Es­tado, seus órgãos e entidades, todos proclamando a condição de titulares do direito subjetivo de exigir a resolução do conflito.
Corolário do poder-dever de julgar e de tudo conhecer, está o sempre recla­mado dever de prestar justiça, como correspectivo ao direito de ação, que é o poder de qualquer ente de exigir a resolução do conflito.
Exercendo a atividade estatal especificamente voltada para a resolução dos conflitos (jurisdição), que é deflagrada pela ação, o juiz dirige o processo, que é a re­lação social, prevista pelo Direito, instrumentada para a resolução do conflito.
Jurisdição, ação e processo constituem a trilogia voltada para a resolução do conflito, na qual o juiz é o centro e principal responsável, a despeito da essencialida­de de funções também voltadas para a administração da justiça, como a Advocacia, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Polícia Judiciária e os sistemas fazendá­rio e penitenciário.
As restrições formais ao exercício da jurisdição podem ser de caráter temporal, como a que se vê no art. 217, § 2º, referente à instância disciplinar desportiva, ou de­correntes do sistema presidencialista de governo, aí abrangendo os atos supremos de cada Poder, como a declaração de guerra, a feitura da paz, a decretação de suspen­são das garantias constitucionais, os atos internacionais. Mesmo assim, resta o con­trole judicial sob os aspectos formais, quando houver, ainda que potencialmente, le­são a direito (art. 5º, XXXV).
Bem mais extensas são as restrições materiais à jurisdição, todas reflexos da ineficácia do poder estatal em determinados setores sociais.
Há grupos sociais aparentemente imunes ao poder do Estado, como os "banqueiros" do jogo do bicho, o narcotráfico, os fazendeiros escravizadores e, em outro nível, as grandes corporações e empresas, que relutam em apresentar, em pro­cesso judicial público, determinados aspectos de sua atuação, optando, cada vez mais, por formas alternativas de composição dos litígios, como, por exemplo, a arbi­tragem.
O processo tradicional também tem sido insuficiente para a resolução de de­terminados conflitos, como aqueles decorrentes de ocupações coletivas da proprie­dade, em que a tutela jurisdicional exige, de início, a citação de número indetermi­nado de pessoas e, a final, em sua execução, da atividade de assistência social do Po­der Executivo, que, muitas vezes, prefere o singelo emprego da força policial. O
A grande restrição material à jurisdição está, desgraçadamente, no fato da marginalização de dois entre três brasileiros, que, pela pobreza ou miséria, não têm direitos a pleitear ou, se os têm, não dispõem de consciência para fazê-lo.
Daí a crise transborda para as expectativas do papel do juiz.
Sujeito do poder estatal e social, alguns somente vislumbram na imparcialida­de do juiz a neutralidade fria e olímpica, incompatível com aquele que tem o dever primário de resolver o conflito, para tal, levar o processo ao momento da decisão.
O protótipo do juiz, como observador do fragor da batalha entre as partes, em que seria não só neutro, mas alheio e distante, vai corresponder ao padrão do Estado liberal-capitalista, absenteísta, que somente pode regular as atividades individuais por lei formal, necessariamente genérica e abstrata e, assim, desatenta aos caracteres pessoais (veja-se o disposto no art. 5º, inciso II, da Constituição, exigindo lei genérica e abstrata para regular as condutas individuais).
Os autores antigos até mesmo diziam que o juiz seria, no processo, o "conviva de pedra".
Mas o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o "conviva de pedra", mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos.
Na função de diretor do processo, cabe ao juiz assegurar às partes a igualdade de tratamento (Código de Processo Civil, art. 125, I) o que lhe exige, em determina­dos momentos, tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade, atu­ando na busca de maior igualdade.
Dirigir o processo é sempre lhe impulsionar o curso, ainda que seja necessário vencer a resistência da parte; é perceber a realidade fática que, muitas vezes, não está expressa nos limites dos autos, determinando as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias (Código de Processo Civil, art. 130); é apreciar livremente a prova, atendendo aos fatos e cir­cunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pela parte (Código de Pro­cesso Civil, art. 131); é expressar na sentença o sentimento, indicando os motivos que lhe formaram o convencimento (Constituição, art. 93, IX).
Os cidadãos não têm direito adquirido à sabedoria do juiz, mas têm direito ad­quirido à independência, à autoridade e à responsabilidade do magistrado.
A lei é genérica e abstrata e não poderia, por si só, propiciar a solução mais adequada nos casos individuais e concretos que o juiz examina.
Desconfia-se da lei, porque, segundo alguns, seria anacrônica, incapaz de acompanhar as mudanças sociais.
Também se inquina a lei de refletir os interesses momentâneos de grupos que, nem sempre, estariam a atender a outros interesses que não fossem os seus; esque­cem-se os críticos da característica do sistema representativo, em que o legislador eleito não pode deixar de se influenciar pelo eleitorado.
Além do mais, a regra genérica e abstrata não pode prever todas as soluções que os novos tempos exigem.
Daí o conflito para o julgador: Lei ou Justiça?
Muitos confundem a Lei (Lex) com o Direito (Ius) e com a Justiça (Justitia), embora cada um deles tenha sentido próprio e ofereçam aspectos multifários.
Para alguns, a Lei é o direito positivo, o conjunto de normas genéricas e abs­tratas impostas pelo legislador; para outros, a Lei se confunde com o Direito, que é mais que o direito positivo, pois abrange os costumes e os princípios gerais.
Outros vislumbram que, no Direito, se esgota a Justiça, a qual poderia ofere­cer, também, a perspectiva de visão do mundo que se considera a mais adequada para determinada sociedade em dado momento histórico.
Direito é vocábulo empregado com sentidos diferentes, como se vê na lição de André Franco Montoro:
1 - como a lei ou norma jurídica (direito-norma), na frase "o Direito brasileiro proíbe o duelo";
2 - como a faculdade ou poder de agir (direito-faculdade ou direito-poder), na expressão "o Estado tem direito de cobrar impostos":
3 - como expressão de justiça (direito-justo), na frase "o salário é direito do trabalhador":
4 - como fenômeno social (direito-fato social), na expressão "o Direito é um se­tor da realidade social"; e
5 - como disciplina científica (direito-ciência), na expressão "o estudo do Di­reito requer métodos próprios".
Não existe, pois, somente um significado para o Direito, mas diversas realida­des distintas, que devem ser apuradas para se perceber o conteúdo.
Em decorrência, visando adaptar o Direito às mudanças sociais, sem que per­desse o seu caráter dogmático, novas correntes oferecem soluções para o que deno­minam "imobilismo jurídico".
Necessariamente, as transformações deveriam decorrer, inicialmente, de pro­funda alteração da estrutura judiciária e do papel do juiz, pois a ele cabe o papel de aplicação do Direito no caso concreto e em torno dele giram todos os personagens do processo. Por isso, tais correntes parecem fazer a oposição dilemática entre "legislação/jurisdição" ou "lei/sentença" ou "legislador/juiz", como se fossem opções de antíteses insuperáveis e não estivessem, como estão, em intensa relação dialética, pois somente serão eficazes se complementares entre si.
Temos a Escola do Direito Alternativo, surgida na Europa há mais de vinte anos e que, no Brasil, é divulgada principalmente pelos juízes do Rio Grande do Sul, em cuja escola da magistratura ganhou foros de matéria curricular.
Em tese de mestrado, o juiz catarinense Lédio Rosa de Andrade bem examina o enfoque alternativo à magistratura, tendo sua obra o ponto culminante no capítulo IV, intitulado "Magistratura como instrumento de transformação social", onde afirma:
" Com o uso alternativo do direito não se trata de fa­zer a revolução com o direito, mas de reconduzir as interpre­tações jurídicas progressistas ao desenvolvimento das con­tradições sociais, não para a sobrevivência das instituições, senão para restituir à classe obreira a capacidade criadora da história, diz Barcellona.
Entende-se possível a tranformação social por formas pacíficas, podendo, os magistrados, participar dessa liça com destaque, desde que entendam o lugar por eles ocupado, per­cebam a quem tem servido sua forma de atuar e modifiquem sua prática judicial. Portanto, quando se fala de revolução, não se está pregando, de forma alguma, a luta armada, pois não é essa a única, nem a melhor, opção para a mudança da sociedade. Ao contrário, entende-se ser o processo dialético da procura da hegemonia de uma nova visão, guerra de posi­ção, conforme conceitua Antonio Gramsci, a firma mais efi­caz de alterar as relações de poder, sem grandes traumas, so­frimentos ou hecatombes, e, também, a mais justa, pois per­mite à população escolher seu próprio caminho. Atitude re­volucionária, todavia, por visar a modificar as instituições, tornar o uso do poder eqüitativo, transferir o comando da so­ciedade, entregando ao próprio povo a direção de seu destino, transformado em autor de sua história."
O movimento apresenta outras denominações, como, por exemplo, o Direito Insurgente
[14] ou Direito achado na rua.
O uso alternativo do Direito não implica, no entanto, em rompimento absoluto com a legalidade, como se observa, por exemplo, em trabalho versando sobre o papel do Ministério Público, instituição voltada para a legalidade estrita, onde se concluiu:
"1. A evolução histórica do Ministério Público revela o seu deslocamento institucional na superestrutura do Esta­do, passando a integrar e a representar a sociedade civil. O Ministério Público é um órgão da sociedade civil.
2. Como órgão integrante da sociedade civil, cumpre ao Ministério Público incrementar o processo de democrati­zação da sociedade brasileira, canalizando os valores reinan­tes no seio das classes populares e contribuindo, na sua esfe­ra de atuação, para a superação da alienação política e econômica dessas classes.
3. Como canal de demandas sociais e coletivas, o Mi­nistério Público alarga o acesso à Justiça e contribui para a democratização do aparelho jurisdicional do Estado.
4. O Ministério Público atua, assim, como agente cri­ador e aplicador do direito, adequando-o à realidade social e subjacente, permeada de conflitos complexos e diversificados, irredutíveis a um tratamento unitário e formal pelo direito posto."
Vê-se, pois, que tais correntes não aspiram a criação de um novo Direito, mesmo porque o Direito que vislumbram não perdeu o contato com o Direito que aí está; não revolucionam o Direito, simplesmente pretendem a reforma de seu uso.
O Direito é sempre o mesmo, independentemente de seu uso.
O Direito não se resume ao apego excessivo ao texto legal, porque já ensina­vam os clássicos que o Direito náo se esgota na Lei; no entanto, não se esqueça o juiz das palavras de Eduardo Couture: "o juiz é um homem que se move dentro do Di­reito como o prisioneiro dentro de seu cárcere" - somente com o Direito e através do Direito pode ser alcançado a Justiça.
Também o juiz, como ser humano que é, tem o direito subjetivo, o dever jurí­dico e o dever moral de lutar pela Justiça, de fazer do trabalho o produto de seu es­pírito.
Seu ofício também exige técnicas que somente serão criadas e desenvolvidas pela projeção de seu espírito ao produto do trabalho; para tal, deve se socorrer de sua formação e de sua ciência, mas não pode perder de vista de que o brocardo "fiat Justitia pereat mundus" ("faça-se Justiça, ainda que o mundo pereça") não corres­ponde mais à necessidades do mundo moderno e que o ato de poder não pode se tra­duzir em injustiça.
A dogmática tradicional ou as correntes alternativas nada mais são que tenta­tivas de abrir caminhos mais amplos para o juiz no seu ofício de realizar o Direito; são instrumentos e não o fim de sua missão. Delas deve se socorrer, mas não pode fungi-las, de instrumentos, em fim.
Ao juiz basta incorporar seu espírito à sentença, pois ela expressa seu senti­mento de Justiça.
Ao juiz basta julgar para realizar o Direito; não realizará o Direito se denegar a Justiça.
Julgar é preciso.
"As garantias jurídicas, ou seja, vincular as funções do Estado a normas gerais, protegem, junto com as liberdades codificadas no sistema de Direito Privado burguês, a ordem do "mercado-livre". Interven­ções estatais sem autorização através de uma lei não são, da perspectiva de seu sentido sociológico, pri­mariamente condenáveis por ferirem princípios de justiça estatuídos por direito natural, mas simples­mente porque seriam imprevisíveis e, por isso, quebrariam a espécie e a extensão de racionalidade que há no interesse das pessoas privadas operando capitalisticamente. Senão faltariam exatamente aquelas "garantias da previsibilidade" que já Max Weber descobriu no capitalismo industrial: o cálculo das chances de lucro exige um intercâmbio que transcorra de acordo com as expectativas de probabilidade. Por isso é que estar no âmbito da competência e de acordo com uma justiça formal se tornaram crité­rios do Estado de Direito burguês: administração "racional" e justiça "independente" são, a nível da organização, os seus pressupostos. A própria lei, a que o Executivo e a Justiça precisam se ater, tem de ser igualmente obrigatória para todos: não deve, em princípio, permitir nenhuma dispensa ou privilé­gio." (Jürgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Strukturwandel der vffentlinchkeit), tradução de Flávio K. Kothe, Rio de Ja­neiro, Tempo Brasileiro, 1984).
Após lembrar a visão liberal de que os direitos fundamentais representam uma área interdita à atua­ção estatal, Zippelius afirma que tal conceito seria mais adequado ao Estado típico do século XVIII e hoje proporcionaria uma garantia incompleta da liberdade individual "a qual pode ser ameaçada tam­bém a partir de outros pontos, como, por exemplo, a partir daqueles grupos e associações que têm a ca­pacidade de fixar normas profissionais e de conduta e de as impor aos seus membros". O mesmo mestre transcreve a lição de Nawiasky-Leusser: "a pessoa está colocada perante não só a força da comunidade encarnada no Estado, mas também perante as forças econômicas próprias de indivíduos e de associações e que, em atenção a isso, uma das mais sérias tarefas da lei constitucional é a proteção con­tra o abuso da força que pode ser praticado por aqueles indivíduos e associações". Contudo, "não é possível tirar rigorosamente a conclusão de que todos os direitos fundamentais, como direitos subjeti­vos públicos, sejam oponíveis também contra todo e qualquer indivíduo no plano geral das relações ju­rídicas privadas. Importa não simplificar excessivamente. 'A aplicação indiscriminada dos direitos fun­damentais às relações jurídicas privadas restringiria a projeção livre da personalidade de modo intole­rável, anularia a liberdade em nome da mesma liberdade'(G. Dahm). Só o Estado paternalista é que se atribui a si próprio a missão de defender os cidadãos contra si próprios numa extensão tão grande quanto possível" (Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado -Allgemeine Staatlehre- 2ª edição, Lis­boa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p . 173.