REALIDADES

Por que do imaginário no passado nada ainda é real? Apenas por não ser contemporâneo!?´Mas ... É do passado que trazemos ao presente a realidade mais sincera!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

ÉTICA PÚBLICA E ÉTICA PRIVADA: DISTINÇÃO


A construção histórica da distinção entre ética pública e moral privada e sua incidência no processo de formação do ideal dos direitos fundamentais:a contribuição de Christian Thomasius


1. Introdução.
Na elaboração histórica das idéias modernas dos direitos do homem, o tema da tolerância, em princípio tolerância religiosa, será de suma importância na construção do conceito de liberdade, um dos pilares fundamentais da atual concepção de direitos humanos. Somente será possível a idéia de tolerância depois da elaboração teórica da separação dos assuntos de moral pública dos de moral pessoal. Esta será a separação entre as questões de ética pública das questões de moral privada. No início da luta pela separação da ética pública da ética privada um autor de suma importância será Christian Thomasius, considerado como o iniciador da Ilustração (Aufklärung) na Alemanha. A importância de Thomasius na construção do conceito dos direitos do homem pode ser condensada em sua fundamental contribuição na evolução do novo modelo de direito natural, o iusracionalismo, e em sua destacada luta contra os processos de feitiçaria e defesa da humanização do direito penal, sendo o precursor de Montesquieu, Voltaire e do próprio Marquês de Beccaria na crítica ao processo penal da monarquia absoluta. Thomasius juntamente com Grotius, Pufendorf e Wolf será fundamental na construção do qualificado pelo professor Gregorio Peces-Barba gigantesco sistema do iusnaturalismo racionalista (Peces-Barba, 1995 a, p. 134), tanto em sua esquematização e teorização na razão humana como na transformação do direito natural divino em direito natural secular. Grotius, Pufendorf, Thomasius e Wolf são os autores iniciadores dessa posição, homens de seu tempo, que já no século XVII e início do XVIII, utilizarão seus esquemas, de acordo com o protagonismo individual característico da burguesia ascendente, para conduzir o novo direito natural, o iusracionalismo, que será a base teórica dos direitos do homem que finalmente serão positivados nos documentos resultantes das revoluções burguesas do final século XVIII (Peces-Barba, 1995 a, p. 134).



2. Ética pública e moral privada.

2.1. Questões preliminares.

A obrigação moral de obedecer ao Direito justo é uma obrigação derivada da obrigação moral de ser justo. O Direito justo é aquele vinculado a um Estado democrático de Direitos e aos históricos direitos fundamentais, positivados nas constituições dos Estados contemporâneos. Na opinião do professor Eusébio Fernández (1990, p. 112) a fundamental pergunta do por quê temos a obrigação moral de ser justo, ou por quê devemos atuar com justiça, é uma pergunta derivada de uma outra mais geral do por quê devemos atuar moralmente, tendo em conta que a justiça é uma virtude moral de forte sentido social, político e jurídico. Peter Singer em seu livro Ética Prática (1998, p. 9) assinalou acertadamente que "algumas pessoas pensam que a moralidade está fora de moda. Vêem-na como um sistema de irritantes proibições puritanas cuja função seria a de impedir que as pessoas se divirtam". Pensamos como o professor Fernández (1990, p. 112) que parte exatamente de uma postura radicalmente oposta, no sentido de que a moral ou a ética não está fora de moda, uma vez que em nossa opinião nestas questões fundamentais não existe moda (que deve servir somente a coisas sem importância) e que a ética do ser humano é importante demais para submeter-se a tal conceito fútil que deve servir as coisas e não a questões fundamentais do próprio ser humano. Como lembrava em diversas ocasiões em suas aulas o mesmo professor Fernández, que José Luis López Aranguren, com toda autoridade, sempre dizia que o homem é estruturalmente moral (Fernández, 1990, p. 112; Aranguren, 1967, p. 43). Da mesma forma o conceito de ética deve ser pluralista, aberto, fundamentado racionalmente na busca do bem estar, da virtude e da justiça. Uma ética que parte do que diz Victoria Camps (1988, p. 9): "(...) o sujeito da ética não é um deus onisciente e absolutamente poderoso, senão nós mesmos, os mesmo sujeitos que andam implicados na vida política, econômica, profissional, lúdica ou simplesmente cotidiana". Peter Singer, na mesma obra anteriormente citada (1988, p. 10, 11 e 12), adverte sobre uma série de pontos que refletem o que não pode ser considerado como ética, são essencialmente quatro pontos. Em primeiro lugar, "a ética não é e não pode ser definida como uma série de proibições ligadas ao sexo"; em segundo lugar, "a ética não é um sistema ideal de nobreza na teoria, mas inaproveitável na prática"; em terceiro lugar, "a ética não é algo inteligível somente no contexto da religião". Pensamos como o próprio Singer: "Minha abordagem da ética vai passar inteiramente ao largo da religião". E em quarto lugar, com a última afirmação Peter Singer pretende desmentir que "a ética é relativa ou subjetiva", uma vez que o citado autor crê em uma ética universal, apesar das diferenças culturais. Ética, que etimologicamente vem do vocábulo grego ethikós que significa habitual, então poderia ser entendida como aquela parte da filosofia que trata do bem e do mal, das normas morais, dos juízos de valor (morais) e que reflexiona sobre tudo isso. Tem assim como objeto a determinação do fim (meta) da vida humana e de meios para alcançá-lo. Immanuel Kant em seu escrito Fundamentação da Metafísica dos Costumes () nos chama a atenção de que "o termo ética significava antigamente doutrina dos costumes, em geral também se chamava doutrina dos deveres. Mais tarde se pensou conveniente transferir este nome somente a uma parte da doutrina dos costumes", aqui vemos já uma idéia de separação da ética privada da ética pública. Sem nenhuma dúvida, a idéia de ética que temos hoje em dia ainda tem como base a filosofia kantiana.



2.2. A Dignidade humana e a diferença entre ética pública e ética privada.

O postulado ético de Kant é de que só o ser racional possui a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios; só um ser racional tem vontade, que é uma espécie de razão, denominada razão prática. A representação de um princípio objetivo, enquanto obrigatório para uma vontade, chama-se ordem ou comando (Gebot) e se formula por meio de um imperativo. Segundo o filósofo, há duas espécies de imperativo. De um lado, os hipotéticos, que representam a necessidade prática de uma ação possível, considerada como meio de se conseguir algo desejado. De outro lado, o imperativo categórico, que representa uma ação como sendo necessária por si mesma, sem relação com finalidade alguma, exterior a ela.O mais importante e principio primeiro de toda ética é o de que "o ser humano e, de modo geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa servir-se a seu talante" (Kant, 1980, p. 134-135). E prossegue: "Os entes, cujo ser na verdade não depende de nossa vontade, mas da natureza, quando irracionais, têm unicamente valor relativo, como meios, e chamam-se por isso coisas; os entes racionais, ao contrário, denominam-se pessoas, pois são marcados, pela sua própria natureza, como fins em si mesmos; ou seja, como algo que não pode servir simplesmente de meio, o que limita, em conseqüência, nosso livre arbítrio" (Kant, 1980, p. 135).A dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita.Daí decorre, como assinalou o filósofo de Königsberg, que todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade como espécie, e cada ser humano em sua individualidade, é propriamente insubstituível: não tem equivalente, não pode ser trocado por coisa alguma. Cada ser humano é único e sem preço: "No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ele tem dignidade" (grifado no original – KANT, 1980, p. 140).Pela sua vontade racional, a pessoa, ao mesmo tempo em que se submete às leis da razão prática, é a fonte dessas mesmas leis, de âmbito universal, segundo o imperativo categórico: "age unicamente segundo a máxima, pela qual tu possas querer, ao mesmo tempo, que ela se transforme em lei geral" (Kant, 1980, p. 141).

Ademais, disse o filósofo, se o fim de todos os homens é a realização de sua própria felicidade, não basta agir de modo a não prejudicar ninguém. Isto seria uma máxima meramente negativa. Tratar a humanidade como um fim em si implica o dever de favorecer, tanto quanto possível, o fim de outrem. Pois sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de outrem sejam por mim considerados também como os meus (Kant, 1980, p. 134-141).É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva em todo o mundo acadêmico, ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade humana. (Sarlet, 2002, p. 34)[03].Segundo o jusfilosofo argentino Carlos Santiago Nino (1943-1993), a formação de uma consciência moral se atinge por propaganda ou por uma discussão racional (Nino, 1989, p. 5). Afortunadamente, na opinião do professor argentino infelizmente precocemente falecido, a vigência da discussão racional é muito mais ampla do que a dos modismos passageiros relacionados com o tema dos direitos humanos (Nino, 1989, p. 5). É de fundamental importância ter-se em conta a formação gradual através da historia do crescimento moral do ideal dos direitos humanos. Algumas questões estão na base desse ideal, uma delas é a separação das questões de ética pública das de éticas privada, como as chamam o professor Gregorio Peces-Barba (1995 b, p. 14-17 e 75-79), ou das questões de moral social das de moral pessoal, como as chamam o professor Eusébio Fernández (1990, p. 101-104).Na concepção do mundo atual, talvez a diferença entre ética pública e ética privada seja relativamente clara, mas no contexto histórico da formação do ideal dos direitos fundamentais essa é uma questão básica. A não distinção entre o campo da ética pública e o campo da ética privada, ou respectivamente da moral social e da moral pessoal, é uma característica do Direito anterior ao advento da modernidade. A distinção entre o que é delito e o que é pecado, questões de ordem pública e questões de moral pessoal, é uma característica do Direito que surge com o advento do constitucionalismo e da positivação dos direitos fundamentais. Sem nenhuma dúvida é uma demanda fundamental separar as questões de moral pessoal das questões de moral social. Importantíssimo para o aparecimento e positivação dos direitos fundamentais, será a distinção, compreensão e isolamento das questões de ética pública.Desta forma, então para a compreensão do que se supõe ser a ética pública faz-se necessário estipular seu sentido e distingui-la da ética privada. Assim, como diz professor Peces-Barba, ética pública é sinônimo de justiça, que há sido o nome tradicional desde Platão e Aristóteles (Peces-Barba, 1995 b, p. 14). Nas palavras do professor espanhol "(...) é a moralidade com vocação de incorporar-se ao Direito positivo, orientando seus fins e seus objetivos como Direito justo" (Peces-Barba, 1995 b, p. 14). Como é sabido, desde Hobbes que é muito claro que tanto o Direito como a moral nos diversos grupos e organizações sociais estão sobre a base da existência de certas circunstâncias básicas da vida do homem em sociedade. Para Hobbes, entre as circunstâncias que explicam e justificam a gênese do direito, ou seja, da sociedade civil ou commonwealt, está a questão da moral, pois sugere que elas – as circunstancias básicas da vida do homem em sociedade – estão subjacentes ao discurso moral, quando diz que no estado de guerra de todos contra todos nada é injusto, já que justiça ou injustiça são conceitos que somente se aplicam quando o homem vive em uma sociedade organizada (Hobbes, 1988, p. 107).Ética Pública e ética privada se distinguem, mas também se comunicam (Peces-Barba, 1995 b, p. 15). Sem dúvida um dos grandes equívocos do Direito de épocas passadas, dos históricos e atuais críticos conservadores da modernidade e em concreto dos fundamentalismos religiosos é a confusão entre ética pública e ética privada, tanto no sentido de converter à ética privada em ética pública, como a de pensar que a ética pública pode transformar-se em ética privada. Nas palavras do professor Peces-Barba "a ética pública é uma ética procedimental que não sinaliza critérios, nem estabelece condutas obrigatórias, para alcançar a salvação, o bem, a virtude ou a felicidade, nem fixa qual deve ser nosso plano de vida ultima" (Peces-Barba, 1995 b, p. 15). Podemos falar em paz social marcada pela ética pública, uma vez que "Marca critérios, guias e orientações, para organizar a vida social, de tal maneira que situe a cada um de nós, para atuar livremente nessa dimensão última de escolher nosso caminho, nosso plano de vida para alcançar o bem, a virtude, a felicidade ou a salvação, é dizer, para escolher livremente nosso ética privada. Supõe a ética pública um esforço de racionalização da vida pública e jurídica para alcançar a humanização de todos" (Peces-Barba, 1995 b, p. 15). A ética pública é um meio para um fim, que fazendo uso da filosofia kantiana devemos dizer que tal fim é o desenvolvimento integral de cada pessoa e sua dignidade. Já a ética privada, nos ensinamentos de Peces-Barba (1995 b, p. 15-16), é uma ética de conteúdos e de condutas que sinaliza critérios para a salvação, a virtude, o bem ou a felicidade, ou seja, orienta nossos planos de vida. Tem duas dimensões: a individual e a social. A primeira tende diretamente ao objetivo de regular nossa conduta a seu fim último, enquanto que a segunda o faz através de nossas relações sociais com as demais pessoas. Um exemplo desta segunda são os princípios de que há que tratar aos demais como fins e não como meios ou de que há que cumprir as promessas.A ética privada pode ser obra de uma pessoa para si mesma, ou assumida desde a proposta de uma religião, de uma Igreja ou de uma concepção filosófica. Em todo caso a autonomia é uma característica necessária da ética privada em tanto quanto exige ou a criação ou a aceitação pessoal destes critérios de comportamento. Ademais, tem que suscetível de ser oferecida aos demais como uma lei geral, e este requisito da universalidade, parece que cumpre automaticamente, com a doutrina de uma Igreja, e que exige maior cuidado nas concepções éticas individuais. Um das patologias da universalidade existe quando se pensa que, levada as suas últimas conseqüências, exige converter ética privada em ética pública, que se enfrenta com a tolerância e com o pluralismo, que são características essências deste processo de racionalização da ética pública, na sua relação com o poder e com o Direito (Peces-Barba, 1995 b, p. 16).

3. Christian Thomasius e a diferenciação entre as questões de Direito e as questões de moral pessoal.

Um autor pouco estudado e conhecido em nosso meio acadêmico, e fundamental em nosso tema, é o alemão Christian Thomasius. Ele será importantíssimo no início do histórico processo de separação e diferenciação conceitual entre as questões de Direito, relativas a uma ética pública e as questões de moral pessoal, relativas a uma ética privada. Christian Thomasius nasceu em Leipzig em 1655, no seio de uma família intelectual, seu pai era um conhecido professor de filosofia cultor de Aristóteles. Estudou inicialmente em sua cidade natal e posteriormente em Frankfurt quando ouviu lições sobre Pufendorf e conheceu sua obra que influenciará fundamentalmente o início de seu percurso como teórico do direito natural racionalista. De volta a Leipzig ministrou suas primeiras aulas em alemão, assim inovando, pois até então as aulas eram ministradas em latim. Ainda em Leipzig fundou a primeira revista cultural da Alemanha. Depois de ruidosos problemas com os teólogos luteranos conservadores, por culpa principalmente de seu novo método de ensinar e de sua obra de caráter iluminista, foi deposto de seu cargo de professor e mudou-se para Halle em 1690 para ingressar como docente na Academia de nobres (Ritterakademie). Em Halle, cidade na qual reinava uma maior liberdade e tolerância, em 1694 foi criada uma Universidade, que acabaria por converter-se em um centro de cultura do país, da qual Thomasius seria seu reitor e permaneceria até sua morte em 1728.Thomasius é considerado por muitos como o iniciador do Iluminismo na Alemanha e por isso o autêntico reformador intelectual de seu país (Segura Ortega, 2001, p. 228). Das muitas coisas que se hão dito de sua trajetória o mais destacado seria que, além de iniciador do Iluminismo, Thomasius foi um intelectual sem misérias, como o qualifica o título de um dos escritos mais interessantes sobre sua obra de autoria de Ernest Bloch, exatamente por seu espírito inquieto, reformista e crítico com as idéias de sua época quando de maneira destacada e com muita personalidade colocou-se à frente de seu tempo defendendo a tolerância e a liberdade, especialmente a liberdade de pensamento do indivíduo frente à religião e ao Estado. Engajado com o seu tempo, sem misérias e sem a mesquinharia do viver fácil daqueles que dizem sim ou fazem vistas grossas diante das misérias de sua época, incomodado com a intromissão por parte do Estado absoluto e da Religião em assuntos particulares da vida do indivíduo, através da punição por atos relativos à vida privada de cada um, tratou de teorizar sobre a separação do Direito da Moral, além de criticar a intolerância religiosa e pedir pela humanização do Direito Processual penal. Norberto Bobbio relata que "(...) a paixão fundamental da vida de Thomasius, a qual revela seu iluminismo reformador, é a liberdade de pensamento. Em torno a esta paixão se move toda sua obra de filósofo e jurista" (Bobbio, 1947, p, 47); Manuel Segura Ortega diz que "(...) sua vida foi uma demonstração constante de luta contra o dogmatismo, a superstição e a ignorância" (Segura Ortega, 2001, p. 228-229). Um homem muito incômodo ao seu entorno adormecido e servil, como relata Ernest Bloch, que se houvesse cumprido os desejos de seus contemporâneos, o irritante inovador teria sido aniquilado (Bloch, 1980, p. 285). Sem nenhuma dúvida, sua influência é percebida por sua obra extensa, devida à precocidade de seus primeiros escritos, em diversos âmbitos da cultura seja na filosofia, no Direito ou na religião.

4. O processo de formação do ideal dos direitos fundamentais.

A questão da separação entre ética pública e ética privada se dará no contexto histórico do aparecimento dos direitos fundamentais, na linha de evolução que chamamos de processo de formação do ideal dos direitos humanos, ou – no plano dos direitos constitucionalizados – direitos fundamentais.Dentre as linhas de evolução dos direitos fundamentais desenvolvidas pelo professor Gregorio Peces-Barba estariam os processos de positivação, de generalização, de internacionalização e de especificação. Antes, porém, do início do processo de positivação, ou melhor, do primeiro processo de positivação levado a cabo com as revoluções burguesas do século XVIII, nos parece acertado e didático falar em um anterior processo de evolução que seria o qual chamamos de processo de formação do ideal dos direitos fundamentais. Esse processo de evolução estaria diretamente relacionado com a fundamental pergunta da filosofia dos direitos fundamentais que seria: qual deve ser seu conteúdo? Essa seria, em nossa opinião, a terceira pergunta fundamental relativa aos direitos, uma vez que a primeira e segunda respectivamente seriam: o por quê (?) e o para quê (?) dos direitos fundamentais.Esse processo de formação do ideal dos direitos fundamentais é iniciado na época que o professor Peces-Barba chama de trânsito à modernidade. Para o autor espanhol, os direitos fundamentais são um conceito do mundo moderno resultantes exatamente das condições que surgem justamente nessa época de trânsito da Idade Média para Idade Moderna. O trânsito à modernidade será um longo período, que se iniciará no século XIV e chegará até o século XVIII, no qual pouco a pouco a sociedade irá se transformando e preparando o terreno para o surgimento dos direitos fundamentais. Com as mudanças que se darão no trânsito à modernidade, a pessoa reclamará sua liberdade religiosa, intelectual, política e econômica, na passagem progressiva desde uma sociedade teocêntrica e estamental a uma sociedade antropocêntrica e individualista. No trânsito à modernidade as estruturas do mundo medieval serão progressivamente substituídas por umas novas, ainda que algumas permanecerão até as revoluções liberais do século XVIII. Ao longo do período em questão é quando se formará a, chamada pelo professor Peces-Barba, filosofia dos direitos fundamentais como aproximação moderna da dignidade humana, em meio das feições características das mudanças que se influem e se entrelaçam. Estas se dariam resumidamente nos campos da economia, da política e da mudança de mentalidade. A profunda mudança na situação econômica com o surgimento e progressivo amadurecimento do capitalismo e com o crescente protagonismo da burguesia, favorecerá a mentalidade individualista diante da visão do homem em estamentos (Peces-Barba, 1982, p. 5-6 e 10-24). No campo político o pluralismo do poder será substituído pelo Estado como forma de poder racional centralizado e burocratizado. O Estado é soberano, na construção doutrinal que se inicia com Jean Bodin, ou seja, o Estado não reconhece superior e tem o monopólio no uso da força legitima. Seu crescente poder como Estado absoluto, a utilização do Direito como intrumentum regni, exigirão como antítese, para garantir ao individuo um espaço pessoal, a reclamação de uns direitos. Mas, o Estado absoluto é uma etapa imprescindível. Seu esforço de centralização, de robustecimento de uma soberania unitária e indivisível, sua consideração do individuo abstrato, o homo juridicus como destinatário das normas, criará as condições necessárias para o aparecimento dos direitos fundamentais positivados exatamente com as revoluções liberais contrárias ao Estado absoluto (Peces-Barba, 1982, p. 7 e 25-52). Uma nova mentalidade, impulsionada pelo humanismo e pela Reforma, se caracterizará pelo individualismo, o racionalismo e o processo de secularização. Em concreto, a Reforma protestante, com a ruptura da unidade eclesial, gerará o pluralismo religioso e a necessidade de uma fórmula jurídica que evite as guerras por motivos religiosos. Neste espaço a tolerância, precursora da liberdade religiosa, será o primeiro direito fundamental (Peces-Barba, 1982, p. 7-8 e 53-122).Todos estes elementos citados, e com o fim do domínio intelectual da teologia, o auge da nova ciência e a exaltação do naturalismo, em suas influências complexas, desembocaram em uma importância extrema do individualismo e de sua capacidade de iniciativa. O conceito de contrato social e do Direito que surge se orientará também para explicar o aparecimento dos direitos fundamentais.O iusnaturalismo racionalista representa, segundo o professor Eusébio Fernández, "(...) no âmbito da história do pensamento filosófico-jurídico, a consecução de um marco muito importante dentro do amplo, complexo e nada homogêneo movimento de secularização do mundo moderno" (Fernández, 1998, p. 575). Dito processo de secularização se delimita exatamente por uma nova concepção do antigo problema da lei natural, e Thomasius será fundamental na construção dessa nova mentalidade. Como diz em seus ensinamentos, o professor Elías Díaz: "Precisamente a ruptura do monolitismo e a uniformidade religiosa por obra da Reforma protestante, levaria coerentemente à necessidade histórica de um iusnaturalismo não fundado de modo iniludível na lei eterna (...)" (Díaz, 1980, p. 270). No mesmo sentido que o professor Peces-Barba, continua o mestre de toda uma geração de jusfilósofos espanhóis, com o intuito de encontra (...) um conceito unitário de Direito natural, aceito por todos os homens, sejam quais forem suas idéias religiosas, fez-se necessário tornar independente aquele de estas. No novo clima de incipiente racionalismo (séculos XVI e XVII) de afirmação da autonomia e independência da razão humana diante da razão teológica, reflete-se que a base e o fundamento desse Direito Natural não pode ser mais a lei natural, senão que a mesmíssima natureza racional do homem, que corresponde e pertence de igual maneira a todo o gênero humano: a razão, diz-se, é o comum a todo homem. Sobre ela se pode construir um autêntico e novo Direito Natural. (Díaz, 1980, p. 270-271). Exatamente a partir desse contexto de mudanças na sociedade, evidentemente que no ocidente, é que começa a aparecer e delinear-se o conceito dos direitos fundamentais entendidos em seu início como direitos naturais, graças à contribuição do iusnaturalismo racionalista. Como sinalizou o professor Antonio Enrique Pérez Luño: "O conceito dos direitos humanos tem como antecedente imediato a noção dos direitos naturais em sua elaboração doutrinal pelo iusracionalismo naturalista" (Pérez Luño, 1979, p. 17).Na passagem de uma teoria do direito natural a uma teoria dos direitos naturais concretos, que irá desembocar nas declarações de direitos do século XVIII, será de fundamental importância um novo significado que define o iusnaturalismo racionalista e que o diferencia substancialmente de todas as teorias iusnaturalistas anteriores. Como aponta Alessandro Passerin D’Entreves: "A moderna teoria do Direito natural não era, falando com propriedade, uma teoria do Direito objetivo, senão uma teoria de Direitos subjetivos. Produziu-se uma mudança importante baixo o invólucro das mesmas expressões verbais. O ius naturales do filósofo moderno já não é a lex naturalis do moralista moderno nem o ius naturales do jurista romano" (D’Entreves, 1966, p. 75). Na formulação do direito natural racionalista será fundamental a separação das questões relativas à Moral do Direito, em outras palavras, a secularização do Direito natural será basilar para o aparecimento dos direitos fundamentais, e isso somente ocorre graças à mudança da mentalidade. Exatamente por esse motivo sinaliza Jürgen Habermas que "(...) a apelação ao direito natural clássico não era revolucionaria (...)", enquanto que "(...) a apelação ao moderno (direito natural) chegou a sê-lo" (Habermas, 1997, p. 88).Na mudança de mentalidade que vai propiciar a luta e a positivação dos primeiros direitos fundamentais, então direitos do homem e do cidadão, alguns autores serão fundamentais para seu aparecimento. Serviram como fundamento e base dos mesmos. Estes serão os autores do iusnaturalismo racionalista. Entre eles podemos citar o primeiro período dos pensadores iusnaturalistas da época moderna, que o historiador do Direito Franz Wieacker classifica como precursores e fundadores do iusracionalismo, entre os quais encontram-se Johann Oldendorp, os autores da escolástica tardia espanhola, Johannes Althussius e o fundador por excelência do iusracionalismo Hugo Grotius (Wieacker, 1980, p. 303, 304 e 315 e seguintes). Também são dignos de menção os iusnaturalistas racionalistas (ou iusracionalistas) Thomas Hobbes, Baruch de Espinosa, Samuel Pufendorf que Wieacker classifica como a segunda geração (Wieacker, 1980, p. 304 e 340 e seguintes) de autores dessa corrente tão fundamental à formação do ideal dos futuros direitos humanos. Wieacker classificará Thomasius como pertencente a uma terceira geração dos iusracionalistas, juntamente com Christian Wolf, que servirá de elo entre o iusracionalismo e o Iluminismo (Wieacker, 1980, p. 353 e seguintes.

5. A contribuição de Thomasius ao Direito natural racionalista no cotejo entre ética pública e ética privada.

A segunda metade do século XVIII, como sabemos, constitui por muitos aspectos um período decisivo para a formação do pensamento filosófico e jurídico contemporâneo; mas será na primeira metade do século das luzes que começarão fundamentalmente a surgir os escritos mais explícitos resultantes de todo o processo anteriormente mencionado que formará o ideal dos direitos fundamentais. De esta forma, a separação do Direito da Moral, a necessidade de incrementar a tolerância religiosa e a crítica das instituições punitivas do antigo regime, todos temas fundamentais na elaboração posterior de um Direito Penal sobre novos fundamentos, serão inicialmente os capítulos principais da luta ideológica a ser travada como prova da mudança de mentalidade que se fazia necessária para a positivação dos direitos fundamentais no final do século em questão.Não deve surpreender o interesse dos filósofos e juristas da Ilustração demonstrado pela tolerância religiosa e pelo regime repressivo da monarquia absoluta, pois o século XVIII não foi somente o século da razão, foi também o século dos sentimentos, da filantropia e da chamada dulcificação do Direito. E estes valores tinham necessariamente seu ponto de partida no reproche à intolerância religiosa professada e na crítica a um Direito Penal violento, supersticioso e arcaico. Sem nenhuma dúvida as origens ideológicas de ambas críticas se encontram inspiradas no pensamento racionalista, humanitário e secularizador da Ilustração.Desta forma com Christian Thomasius estamos diante de um autor ao mesmo tempo do início do Século XVIII e da transição com o século anterior, pois como foi visto nasce em 1655 e morre em 1728. Thomasius deve ser situado como iniciador da Ilustração, uma vez vista a importância que concede a luta pela dignidade humana numa autêntica cruzada contra o sistema penal da monarquia absoluta e pela separação do Direito da Moral. É considerado um continuador de Pufendorf, ainda que acrescentará uma importante dimensão original a sua obra, um pessimismo recebido por sua formação luterana e uma fundamental aposta pelo processo de secularização que começa com Grotius. Diante do pensamento católico elogiará esta secularização: "Grocio fue el primero en resucitar de nuevo y empezar a purificar esta utilisima disciplina que había sido totalmente manchada, corrompida y casi muerta por el polvo del escolasticismo; así la disciplina dice por sí misma cuanto la revistió Pufendorf de manera excelente y honrosa y la defendió virilmente de sus variados adversarios (…)" (Thomasius, 1994, p. 5). A filosofia jurídica de Thomasius está condensada em três de suas obras: Institutiones iurisprudentiae divinae libri tres (um tratado de Direito Natural em três tomos intitulado Instituições de Jurisprudência Divina – Frankfurt, 1688 – doravante Instituições); Fundamenta iuris naturae et gentium (Fundamentos de Direito Natural e de Gentes – Halle, 1705 – doravante Fundamentos) e Paulo plenior historia iuris naturalis (História algo mais extensa do Direito Natural – Halle, 1719). A doutrina divide a obra de Thomasius em duas etapas, uma marcada pelo livro de 1688 e outra pelo livro de 1705. É corrente a afirmação no sentido de que sua obra evolucionou já que na primeira etapa era marcado pela influência de Hugo Grotius e, sobretudo Samuel Pufendorf e a segunda era genuinamente sua.Na obra Instituições de 1688, Thomasius indicada que o Direito Natural é lei escrita no coração de todos os homens, conceito que alude a Deus como fonte imediata de Direito natural e, concretamente, a voluntas Dei, não a ratio divina (Blanco González, 1999, 137). Thomasius em sua primeira etapa, por sua formação de luterano, participa de um voluntarismo da fundamentação teológica imediata do Direito natural. Afirma que esta lei escrita obriga a fazer o que é necessariamente conforme a natureza do homem racional e abster-se do que a ela repugna, referência à razão como fonte mediata do Direito natural. Estas duas fundamentações, contígua teológico voluntarista de um lado e intermediaria racionalista do outro, se predicam do Direito natural quando Thomasius ainda não evolucionou na direção da distinção total entre Teologia e Filosofia (Blanco González, 1999, 137).Em contrapartida na obra Fundamentos, de 1705, o Direito natural se conhece mediante o racionamento de ânimo sereno, sem nenhuma referência à revelação, é a razão individual a que descobre e fundamenta o Direito natural e todo o que a razão se opõe é um preconceito (Blanco González, 1999, 137). A referência a Deus permanece como autor da Natureza e, portanto, também da natureza humana, mas com tal afirmação fica claro que Thomasius não segue com a tese de Grotius de que o Direito natural existira ainda que Deus não existisse. Agora sim, de maneira clara ficou estabelecida na obra de Thomasius a fundamental – e então inovadora – desconexão do saber filosófico com relação ao saber dos teólogos, cuja conseqüência mais imediata será a distinção entre Direito e Moral como normativas do comportamento autônomas e distintas. Na obra de Fundamentos, ainda que nela permanece a influência do barroco e do luteranismo de seus primeiros anos, Thomasius, como foi dito anuncia já a Ilustração e desenvolve com sua distinção entre Direito e Moral a convicção, que se ia consolidando, de que o Estado e seu Direito não eram o instrumento adequado para realizar a concepção do bem de uma Igreja ou confissão, com o que anunciava, além da separação do Estado da religião, também a distinção entre ética pública e ética privada, tão decisiva para a compreensão do conceito de dignidade humana, que é um dos pilares da atual teoria dos direitos fundamentais (Peces-Barba, 2004 a, p. 42-43). A contribuição de Thomasius à histórica separação entre ética publica e ética privada é de fundamental importância. O que realmente elucida sua doutrina de separação entre Moral e Direito é a afirmação de que a obrigação jurídica é essencialmente coativa: como o direito regula as ações externas e somente o externo pode chegar a ser objeto da coação (questões de ética pública), somente essa obrigação é coativa, sem que a coação possa, em câmbio, alcançar ao forum internum da consciência, que é onde se produzem os atos regulados pela Moral (questões de ética privada) (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).Segundo Antonio Fernández-Galiano é possível que esta tese de Thomasius tivesse uma finalidade bem prática, no sentido de criar um reduto – o foro da consciência – no qual o homem se encontraria a salvo da ação onipotente do Estado, titular da força coativa, que teria assim limitada sua eficácia ao foro meramente externo; mas seja assim ou não, o certo é que a afirmação teve conseqüências importantes para o conceito de direito natural (Fernández-Galiano, 2001, p. 484). Uma vez que a coação externa resulta ter um caráter essencialmente jurídico, o direito natural, como conseqüência do afirmado não é, ou não dever ser considerado como Direito, senão simples conselho. Neste sentido Thomasius textual e categoricamente afirma: "(…) la ley natural y divina pertenece más a los consejos que a los mandatos y la ley humana propiamente dicha no se refiere sino a normas imperativas" (Thomasius, 1994, p. 15). Se o direito natural não é Direito, ficará em simples ideal inspirador do único e autêntico Direito que é o positivo (Fernández-Galiano, 2001, p. 484).Com um excessivo esquematismo, na opinião de Antonio Blanco González,Thomasius distingue três ordens ou sistemas normativos do obrar humano, que tendem uniformemente a conseguir a felicidade na vida, para qual se há de viver honesta, decorosa e justamente, que se referem as três ordens normativas: o moral, o político e o jurídico respectivamente. A Moral e a Política originam deveres imperfeitos. O Direito cria deveres perfeitos, distinção que Thomasius segue a Pufendorf. Blanco González (1999, p. 138) traduz a essência da clássica distinção dos fundamentos de Thomasius caracterizados nos planos do honesto (honestum), do decoroso (decorum) e do justo (iustum):O honesto, identificado ao moral ou ético, provem do princípio faz a ti o quê queiras que os demais façam a si mesmos. Esta forma de comportamento é reflexiva; nasce e reverte no sujeito mesmo, carece de relação intersubjetiva ou alteridade; regula o campo das ações humanas das ações humanas boas, tendentes a alcançar a felicidade interna, motivo pelo qual gera mais que uma obrigação também interna que ninguém, mais que o próprio sujeito, pode exigir.O decoroso, sinônimo de político, se nutre do princípio faz aos demais o quê queiras que os demais façam contigo. Esta norma de comportamento é de caráter transitivo e biunívoco; requere a existência de, ao menos, duas partes relacionadas entre si, pelo que seu caráter essencial é a bilateralidade. Esta norma regula as relações com os demais e tende a alcançar a benevolência alheia, é dizer, normatiza aquelas noções medias que nem promovem nem perturbam a paz externa, uma vez que em si mesmas não podem ser coativas. O justo, equiparável ao Direito, provem do princípio não faças aos demais o quê não queiras que façam contigo. Esta norma, igualmente, é transitiva, biunívoca e, ademais, proibitiva, e se refere àquelas relações externas e intersubjetivas que tendem a assegurar a paz externa e que, por afetar a tranqüilidade social, são coercíveis. (grifos no original). Desta forma em Thomasius encontramos plenamente situada a fundamental distinção entre Direito e Moral, ao separar o iustum, objeto do Direito, tanto do honestum, objeto da moral individual, como do decorum, objeto da moral social. Neste sentido, com um maior grau de maturidade que os iusnaturalistas anteriores, o autor alemão em sua etapa de Halle, formula a distinção entre o objeto da ciência jurídica e o objeto da teologia moral com a citada descrição das ações humanas referentes às respectivas esferas do iustum e do honestum, e a categorização das chamadas ações medianas, aquelas irrelevantes à consecução seja da paz externa como da paz interna, as que pertencem à órbita do decorum. O honestum se refere à paz interna (a satisfação da íntima consciência) e o iustum à paz externa (a pacífica convivência social). O Direito limitá-se ao campo do iustum, e consiste no respeito aos demais e a abstenção para que cada um goze de seus próprios direitos. Com isto desenvolve-se a categoria autônoma da juridicidade, por seu caráter intersubjetivo e seu caráter coativo. É dizer, o Direito se refere e é competente unicamente nas ações exteriores que relacionam aos homens entre si e que se podem impor coativamente. Com esta afirmação, se produz a autonomia respectiva do Direito e da Moral, e praticamente se favorece – diante das Igrejas intolerantes e também diante do Estado – a liberdade de pensamento e a liberdade religiosa, posto que somente as ações externas podem ser objeto de coação. Para o professor Truyol y Serra, a separação entre Direito e Moral em Thomasius está "(...) inspirada en la finalidad política de excluir de la regulación estatal o eclesiástica lo relativo al fuero de la conciencia y la vida interior (...)"(Truyol y Serra, 1988, p. 273). Toda esta construção tem uma finalidade bem clara no sentido de que o Estado deve limitar-se a garantir a chamada paz externa. Além do que, a distinção entre Direito e Moral que Wolf completará mais tarde, será a base da concepção kantiana do Direito de cujas categorias vivemos ainda atualmente (Truyol y Serra, 1988, p. 273). A filosofia do Direito, nas palavras de Ernest Bloch (1980, p.300-301), com a contribuição de Thomasius perde assim completamente sua vinculação com a teologia, uma vinculação que, de uma maneira ou de outra, todavia havia sido mantida por Pufendorf e os demais autores iusnaturalistas anteriores.

6. Uma questão fundamental na construção do conceito de ética pública: a luta pela humanização do Direito penal.

6.1. O Direito Penal da Monarquia absoluta.

Segundo o professor espanhol Francisco Tomás y Valiente (2000, 154), é impossível compreender a importância da humanização do Direito penal sem conhecer – ainda que seja brevemente –, como era o sistema jurídico-penal e processual contra o qual irão escrever os filósofos iluministas como Thomasius, Montesquieu, Voltaire e Beccaria. Uma vez que esses autores lutaram por mudanças de uma determinada situação, não é possível entender nem valorizar as censuras e o teor das inovações que foram pedidas pelos mesmos, sem ter alguma idéia sobre qual era a realidade que eles queriam modificar (Tomás y Valiente, 1969, p. 5). A Situação do Direito Penal e do Direito Processual Penal no decorrer dos séculos da Monarquia absoluta era caracterizada por um sem fim de arbitrariedades e uma forma cruel de tratar o acusado. Aos olhos do cidadão de hoje era todo um conjunto de barbaridades: a falta de independência dos juizes; o fato de que os procedimentos não serem iguais a todos; a utilização da tortura como pena e como meio de averiguação da verdade; a utilização de penas inumanas e cruéis. Ditas arbitrariedades e crueldades serão os motivos do dissenso com a ordem legal da Monarquia absoluta que os pensadores do século XVIII utilizar-se-ão para gerar o movimento pela humanização do Direito penal e seu procedimento, que ao lado da necessidade de tolerância religiosa serão as causas pioneiras – primeiras necessidades e reflexões – na formação do ideal dos direitos fundamentais. A limitação do poder do Estado será o terceiro grande movimento, mas este surgirá um pouco depois na segunda metade do século XVIII. Dito movimento pela humanização do Direito penal originará uma elaboração baseada na necessidade de segurança jurídica por meio das garantias processuais, igualdade formal, direito à presunção de inocência, direito de ampla defesa, etc. (Peces-Barba, 1995 a, p. 143). Thomasius será um dos autores iniciais e fundamentais nessa construção.

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