REALIDADES

Por que do imaginário no passado nada ainda é real? Apenas por não ser contemporâneo!?´Mas ... É do passado que trazemos ao presente a realidade mais sincera!

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

CULTURA DO CONSENSO OU CULTO AO ACORDO?


Acordos de conciliação e mediação serão padronizados e permanentes em todo o país


O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editará resolução que vai padronizar a prática da conciliação em todos os tribunais do Brasil. As mudanças incluem a implantação de serviços permanentes de mediação e conciliação nas primeira e segunda instâncias. Atualmente, as conciliações e as mediações têm procedimentos diferentes em cada tribunal. A nova norma está sendo preparada pelo conselho e poderá ser aprovada nos próximos meses.
O CNJ editou, em 2007, a recomendação Nº 8 que solicita aos tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais e Tribunais Regionais do Trabalho a realização de estudos e de ações tendentes a dar continuidade ao Movimento pela Conciliação, mas não gera uma obrigação.
De acordo com o processualista e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), Kazuo Watanabe, a ideia é ampliar o acesso à Justiça por meio da conciliação, e que o Judiciário motiva o jurisdicionado a esse caminho por meio de uma melhor organização. “A solução de conflitos deve ser instrumental, e não alternativa”, explica.
Para a conselheira Morgana Richa, “a conciliação já é uma política pública do CNJ na área da estruturação de serviços. Ela propicia a possibilidade de solução consensual das demandas, realizando no final a pacificação das partes”.



quarta-feira, 25 de agosto de 2010

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO SOCIAL


Inicialmente, o conceito de Estado Democrático de Direito Social deve ser entendido como uma estrutura jurídica e política, e como uma organização social e popular, em que os direitos sociais e trabalhistas seriam tratados como direitos fundamentais. Assim, vale dizer, os direitos sociais encontrar-se-iam sob a guarda de garantias institucionais que os defendessem do assédio privatista. O Estado Democrático de Direito Social é uma espécie de devir jurídico e bem poderia ser anunciado pela necessidade do fomento teórico e prático acerca do atual estágio em que se encontra o próprio estado da arte da democracia, da federação e da República.
Quanto à terminologia, considere-se que o social (que se segue ao substantivo do direito) aqui não se limita ao sentido habitual de se considerar que todo direito é social (ou cultural quando se segue, por exemplo, a tríade Fato, Valor e Norma(1)), uma vez que o direito é um fato social (o conceito fundamental da sociologia funcionalista de Durkheim, com destaque para as características da exterioridade, generalidade, universalidade e coercibilidade da norma social ou jurídica). Com a expressão direito social, tampouco nos referimos ao notório pressuposto de que todo direito é político, quer como processo legislativo, quer como dimensão política inerente ao direito(2)ou, mais restritivamente, como conjunto dos direitos políticos. Referimo-nos, então, ao direito de alcance propriamente social, global, geral, de relevância social, mas que também seja um direito composto de significados, exercício e usufruto social, como direito público e subjetivo que tenha de ser assegurado pelo Estado, a exemplo da educação e da saúde.
Em sentido mais restrito ou técnico, o direito social pode ser interpretado para além da concepção das liberdades públicas, pois, em se tratando de educação ou saúde pública, deve ser visto como dever público do Estado e assim deve manter-se distante qualquer noção restritiva, como a própria idéia da concessão do direito pelo Estado – também não se admite qualquer tipo de permissividade individual quanto a esses direitos(3). Sob este aspecto, vê-se claramente, nem todo direito é social, pois há um direito democrático (antiautocrático) e republicano (coletivista, difuso, ontológico, universalista) e há outros tipos de direitos privatistas ou restritivos, a exemplo dos privilégios, das denominadas leis injustas(4), das chicanas variadas e outras tantas formas ardilosas e odiosas que tendem a varrer a justiça da prática social(5).

Direito social, portanto, refere-se à dimensão globalizada, integrada (não-excludente, não-refratária ou meramente dogmática, excessivamente formal ou sectária do direito), buscando-se a máxima realização da isonomia e da proporcionalidade. Neste sentido, também são direitos tendentes a alcançar os direitos econômicos e trabalhistas e não só os direitos individuais, civis e políticos - defendendo-se por isso a necessidade de serem cláusulas pétreas. No Brasil, para que houvesse a consecução do modelo seria necessária a remoção dos entulhos, dos estorvos autoritários ou conservadores da estrutura estatal (política), dos tradicionalismos da Casa Grande e do servilismo da Senzala, bem como necessitamos aprofundar radicalmente a democracia (como democracia popular ativa, cidadania democrática, com a prevalência dos direitos humanos e do princípio da dignidade humana). Pode-se dizer que o modelo visa ao socialismo, implementando-se políticas públicas e reformas institucionais que viessem a alterar a infra-estrutura sócio-econômica.

Há ainda dois princípios prevalecentes, oriundos do modelo político precedente (o típico Estado Democrático de Direito), que são a legitimidade justa e a justiça social(artigos 170 e 193 da CF.). Como alerta José Afonso da Silva, a Constituição de 1988 já traz a previsão de que os direitos sociais devem ser praticados, efetivados (não constituindo finalidade, mas sim questão jurídica(6)), ou seja, a prática dos direitos sociais é a essência do conceito. No Estado Democrático de Direito, ainda na expressão de José Afonso da Silva, as leis devem modificar o status quosob a diretriz do Estado: "Pois ele tem que estar em condições de realizar, mediante lei, intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. Significa dizer: a lei não deve ficar numa esfera puramente normativa, não pode ser apenas lei de arbitragem, pois precisa influir da realidade social" (p. 121).

De forma objetiva, se há segurança jurídica, devem-se abarcar e absorver os direitos sociais e trabalhistas, a exemplo de uma segurança jurídica social. Em outro destaque de José Afonso da Silva (p. 119), deve haver uma participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo(7). No conceito, portanto, deve-se destacar a conjunção entre ação e consciência, técnica e práxis, conhecimento e virtude política, tendo-se clareza de que lhe é essencial a saúde e a educação pública(8). Nesse contexto, aliás, e em conformidade com o que viemos analisando, toda educação deveria resultar no alargamento da liberdade positiva, mas agora investida no dever objetivo de proteger o público.

Para fixar o conceito, vale frisá-lo: Estado Democrático de Direito Social é a organização do complexo do poder em torno das instituições públicas, administrativas (burocracia) e políticas (tendo por a priorio Poder Constituinte), no exercício legal e legítimo do monopólio do uso da força física (violência), a fim de que o povo (conjunto dos cidadãos ativos), sob a égide da cidadania democrática, do princípio da supremacia constitucional e na vigência plena das garantias, das liberdades e dos direitos individuais e sociais, estabeleça o bem comum, o ethospúblico, em determinado território, e de acordo com os preceitos da justiça social (a igualdade real), da soberania popular e consoante com a integralidade do conjunto orgânico dos direitos humanos, no tocante ao reconhecimento, defesa e promoção destes mesmos valores humanos. De forma resumida, pode-se dizer que são elementos que denotam uma participação soberana em busca da verdade política.


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Fruição Social do DireitoComo vimos, o Estado Democrático de Direito Social necessita, ele próprio, da fruição social dos direitos sociais, a fim de que garantíssemos sua própria existência eficaz– e isso sob a pena severa de ficarmos reverberando máximas e práticas jurídicas e políticas que só favorecem o liberalismo econômico(9).

Por fruiçãosocial do direito, portanto, entende-se inicialmente a condição de que o direito poderia/deveria ser um poderoso instrumento/mecanismo de transformação social. O direito frui socialmente quando interfere positivamente no contexto social, modificando o que já está estabelecido, o status quo, o estado atual em que se encontram as coisas – o que não se confunde com função social do direito, pois que esta pode tanto expressar e materializar a necessária transformação/alteração da ordem social estabelecida (buscar a justiça sempre que se deparar com uma lei injusta) quanto a manutenção da chamada ordem estabelecida.

A idéia de fruiçãosocial do direito, porém, deve sinalizar para um sentido mais amplo, para a própria concepção de que a sociedade, a cultura, o meio social, com suas relações, interações, contradições, são a fonte incessante, inerente e fluentedo direito. Assim, há real fruiçãoquando o direito flui da sociedade, no sentido próprio, dinâmico, não apenas indicativo, figurado – não porque é uma lei social, um fato social, mas porque dessa forma se percebe como conseqüência direta ou resultado prático, ativo, efetivo, na vida das pessoas. Por isso entende-se que há um direito pré-estatal, para-estatal, infra-estatal, ultra-estatal e não somente o chamado nível intra-estatal, quando o direito vem ou passa pelo Estado.

Com isso entendemos que o direito como prática social tende a se tornar global – o que também não se confunde com globalização do direito, isto é, quando uma determinada visão/concepção faz-se hegemônica. A imposição da hegemonia global anula, subtrai, relega, renega, aniquila, subjuga, atrofia, retrai todas as outras possíveis intervenções/proposições/perspectivas ou elaborações conceituais diferentes, diversas, divergentes.

Neste sentido, ainda temos muito a aprender com as resistências sociais e populares erigidas em outras partes do mundo, com outros movimentos sociais, e assim poderia se consubstanciar um tipo de mundialização das práticas sociais, de outros direitos, como forma de se impulsionar a proposição da justiça social. Do dever-ser, dotado de imposição (globalização do direito), passaríamos ao devir, agora dado pela troca (pela mundialização das práticas sociais).

Portanto, um direito não só estatal, não só hegemônico e expressivo da vontade do Estado, mas um direito instigado pelo crescimento/fortalecimento dos anseios, das aspirações e das necessidades sociais. Enfim, isso que chamei de fruição do direito social (mundialização do direito) é alçar o direito para além das categorias limítrofes da sua racionalização (na verdade, reificação, dado que se afasta completamente das necessidades mais prementes/elementares da sociedade civil) ou então da institucionalização e instrumentalização do Estado. Esse Estado Servil transformado em escritório das classes dominantes ou que se curva à vontade dos grupos dominantes(10): tecnocratas éticos e eficientes ou assaltantes refinados, especializados, oficializados (tornados oficiais) do Estado?

Uma metáfora dessa situação, chamada de globalização do direito, pode ser expressa na seguinte imagem: o que há de errado em ler Bobbio em Paris, bebendo scotch?

Mesmo que Bobbio sinalize para a humanização do direito (como conjunto dos direitos humanos: menos direito das coisas, mais direito das gentes, dos povos), essa concepção vai se deparar com a "cidadania tardia brasileira" (o quadro social em que o direito falta para os que mais necessitam) e, por isso, esse "direito do bom burguês" não pode ser simplesmente entoado como canto de sereia (e ainda que essa sereia tenha voz doce, encantada, encantadora e afinada).

Desta forma, é fácil ver que direito é interface, pois, produz (ou ao menos é capaz de produzir), instiga, revela, transpira relações sociais, seja para garantir o que existe, seja para promover novas interfaces, relações ou conexões.

No Brasil, de ontem como de hoje, o direito tem (como deveria ter tido há séculos) um papel fundamental de socialização e humanização. Como estoque e ganho de civilidade, seria a melhor expressão do direito como processo civilizatório, uma vez que qualquer nível suplementar de racionalidade(imparcialidade, objetividade) é preferível ao patronato, ao servilismo, ao catatônico nivelamento popular atual (sociedade de massas) ou à indiferença estatal quanto à qualidade das políticas públicas: governos populistas/conservadores no século XXI?

Precisamos socializar a revolução burguesa e os direitos fundamentais e sociais; precisamos socializar os direitos que nasceram para fins sociais, mas que acabaram privatizados. E esse é o paradoxo da justiça brasileira: o direito que provém do Estado Patrimonial é patronal, mas os pobres querem justiça e reivindicam a aplicação do direito. Vivemos a desigualdade política e requeremos a igualdade jurídica, como tentativa de equacionar o desequilíbrio do poder. Para o bem e para o mal, a ocidentalização ou ideologização dos conflitos (pacificação, tolerância, "direito à diferença") quis que direito se transformasse, retoricamente, em eqüidade.

Historicamente, desde a Casa Grande, a igualdade formal nunca foi realmente tramada como processoprodutor/propulsor de equalização das desigualdades sociais – nossa barbárie sempre foi resultado de uma práxis política perversa, em que se afirmou categoricamente o não-direito: a negação da própria sociabilidade não-excludente. A massa pobre só conheceu relações de fricção com o direito. Para estes, os "sem-poder", houve apenas uma diluição do direito (tornando-se "sem-direito"), o que também sempre lhes acarretou baixos níveis de interação.

A cultura jurídica nunca permitiu que se pensasse ou se reclamasse da ausência do operador da justiça – na melhor das hipóteses, uma parcela privilegiada da população só conheceu o vulgo operador do direito: o bacharel preparado para agregar valor e mais poder à concepção/visão de mundo privatista, parcial, patronal, patrimonial, patriarcal. Aos outros, à maioria, agora, depois de muito custo, foi dado, doado, o direito de reclamar. Mas, no Brasil, infelizmente, o direito à expectativa ainda não coincide com a expectativa do direito.

Então, precisamos urgentemente concretizaras garantias institucionais dos próprios direitos sociais, pois, sem isso, sem uma intervenção maciça no real (de verdadeira revolução do status quo), continuaremos limitados à mesma reverberação jurídico-liberal(11).


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O Estreito Limite Entre Direitos e DeveresÉ correto dizer que todo direito congrega um dever? Se assim o é, o que podemos/devemos fazer para que todos cumpram com seus deveres, especialmente os deveres públicos?A resposta para estas indagações e congêneres é simples: se não se respeitam os direitos da pessoa humana(12), não há como esperar ou querer que elas cumpram com seus deveres.

A frase afirmativa retrata uma questão de lógica formal aplicada à política ou à convivialidade pessoal, e não é custoso notar algumas de suas implicações na política, na gerência do poder público ou na vida das pessoas comuns.

Essa relação/afirmação não seria suficiente para indicar o nível de desestabilidade ou cinismo do próprio poder público? Não será mostra mais do que razoável de que (infelizmente) se mostra frutífero um poder ao largo da segurança jurídica, revelando-se como poder de um Estado Arbitrário, repressivo ou reprimido, em paralelo ao bom senso?

Mas, se ainda assim a frase soa forte ou exagerada, vejamos uma expressão que, inicialmente, foi destacada como conservadora e a seguir (hoje) passou a ser tida como quase que revolucionária:

Hoje em dia se crê que o bem comum consiste sobretudo no respeito aos direitos e deveres da pessoa humana. Oriente-se, pois, o empenho dos poderes públicos sobretudo no sentido de que esses direitos sejam reconhecidos, respeitados, harmonizados, tutelados e promovidos, tornando-se assim mais fácil o cumprimento dos respectivos deveres. A função primordial de qualquer poder público é defender os direitos invioláveis da pessoa e tornar mais viável o cumprimento dos seus deveres. Por isso mesmo, se a autoridade não reconhecer os direitos da pessoa, ou os violar, não só perde ela a sua razão de ser como também as suas injunções perdem a força de obrigação em consciência (Bombo, 1993, p. 33).

Esta observação se deve, digamos, ao fato hoje notório de que a relação direito/dever deveria ser substituída por outra em que as garantias essenciais da cidadania ampliada(13)estivessem dotadas de plena eficácia. Vejamos outra análise em que se privilegia o controle e o direcionamento do poder público, agora dotado de uma certa fonte ou dose de reserva jurídica ou de justiça:

Do ponto de vista da filosofia da história, um ponto de vista muito geral, a afirmação dos direitos do homem, antes puramente doutrinal no pensamento jusnaturalista e depois prático-política nas Declarações do fim do século XVIII, representa uma inversão radicalna história secular da moral. Para usar a famosa expressão kantiana, embora em outro contexto, uma verdadeira e própria revolução copernicana, entendida como uma inversão do ponto de observação. No início – não importa se mítico, fantástico ou real – da história milenar da moral, há sempre um código de deveres(ou de obrigações), não de direitos(...) Paralelamente à predominância tradicional do ponto de vista do dever sobre o ponto de vista do direito na moral, a doutrina política (mas a política é um capítulo da filosofia prática), durante muitos séculos, privilegiou o ponto de vista de quem detém o poder de comandar sobre o ponto de vista daquele ao qual o comando é dirigido e a quem se atribui acima de todas as coisas o dever de obedecer. Durante longa e ininterrupta tradição, os tratados de política, tanto no pensamento clássico quanto no pensamento medieval e moderno, consideraram a relação política, a relação entre governantes e governados, bem mais ex parte principis (da parte do príncipe) do que ex parte civium (da parte dos cidadãos) (Bobbio, 2000, pp. 476-478).

Com isto, o centro de imputação passa a ser o indivíduo, agora na figura do sujeito de direitos, migrando da posição anterior em que as pessoas apenas procuravam cumprir com seus deveres: a rigor, o simples e imperativo dever de obediência(14). Trata-se da afirmação histórica da autonomia(15) (individual) e da ontologia da soberania popular(16)- uma fase histórica que também coincide com o surgimento do Estado-nação(17)e do Estado de Direito(18). Vejamos um pouco mais detidamente esta relação entre Estado de Direito e poder, em que se propôs uma espécie de síntese desta afirmação de Bobbio:

A partir do Estado de Direito, a relação fundamental entre governante e governados passa a ser vista pelo ângulo dos últimos. Durante séculos, predominou o ângulo dos governantes. O objeto da política, até então, era o bom ou o mau governo (...) "ou como se conquista o poder e como ele é exercido, quais são as funções dos magistrados, quais são os poderes atribuídos ao governo e como se distinguem e interagem entre si, como se fazem as leis e como se faz para que sejam respeitadas, como se declaram as guerras e se pactua a paz, como se nomeiam os ministros e os embaixadores. Nessa inversão da relação entre indivíduo e Estado, é invertida também a relação tradicional entre direito e dever. Em relação aos indivíduos, doravante, primeiro vêm os direitos, depois os deveres; em relação ao Estado, primeiro os deveres, depois os direitos" (Loche, 1999, p. 42).

Não é patente que se trata, antes de tudo, de uma dubiedade em que se opõe direito/ garantia a dever/obediência, e isso em face da política ou do poder político do Estado?

De qualquer forma, não serão meras fibras de poderque o direito terá de contornar/controlar ou dirigir/digerir. É a própria essência do poder no momento atual e sua idéia ou concepção mais clara, evidente, forte, abrangente, inquietante, é a de que sem direito só há violência, não há poder organizado (ou se há, está organizado para o terror). No longo percurso da histórica afirmação dos direitos humanos, nunca o próprio direito teve papel tão destacado ou esteve tão relacionado com a vida – numa evidente relação de mutualismo e de dependência(19). Nossa vida, o futuro em termos do mínimo de convivência política, depende do direito que temos ou estamos construindo neste momento. Em síntese, é preciso (urgentemente) reforçar/destacar/aprofundar a concepção/percepção/crença positiva ou perspectiva/visão de mundo e utopia ou mera aposta, na ética, nas funções públicasdo Estado(20), nas políticas públicas, nas Instituições Públicas do Direito, na paz, na tolerância, na democracia não-violenta.

Mas, na prática, que política é essa, quando o mesmo direito social (político) precisa de garantia, de proteção? Não se trata de uma quimera teórica ou ideológica, mas sim de uma forte indicação de que a política (especialmente a brasileira) é inclinada a atropelar o direito – daí a necessidade de se buscarem reforços para o mesmo direito. Trata-se da essência das garantias institucionais: garantir o direito contra o assédio moral ou assalto político.


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O Direito deve ser garantido?A alegação de que o direito precisa ser garantido não será, então, uma tremenda incoerência. Mas, se o próprio direito necessita de garantias (para ser observado e cumprido), o que será de nós que procuramos socorro no direito, que buscamos no direito a nossa fonte de segurança? Dessa forma, não ficaremos ainda mais desprotegidos? Será esse o significado da garantia jurídica sem eficácia política?

Ora, se o direito deve e pode ser garantido, que tipo de garantias seriam dadas aos chamados direitos fundamentais(tanto civis, individuais, quanto políticos e sociais)? Por que os direitos sociais e trabalhistas não são chamados de direitos fundamentais? Por outro lado, quando são, que garantias reais, operacionais, concretas, nós temos de que esses direitos não serão violados? Assim, por que os direitos sociais não são cláusulas pétreas? De outro modo (se mesmo havendo garantias, os direitos são violados de forma absoluta), como seria a vida social se os direitos não fossem garantidos, defendidos, protegidos? Que estrutura social nós teríamos se, historicamente, não tivéssemos lutado pelas garantias individuais e sociais?

Há exagero em dizer que os nobres sempre tiveram direitos, sempre puderam gozá-los, e por isso as garantias são uma conquista social e popular? Podemos pensar que as garantias são a parte essencial da segurança jurídica social, pois (a partir dessa criação institucional) alguns desses direitos agora podem alcançar uma gama maior de pessoas, e assim proteger e garantir especialmente a integridade física dos desafetos e dos detratores do poder, da nobreza, da riqueza, do status quo, da dominação, da autonomia e dos caprichos individuais dos poderosos?

As garantias individuais e sociais são a melhor demonstração da democratização institucional, ou seja, o momento histórico em que a estrutura do Estado começou a se voltar aos interesses populares, às populações e não só às elites. Mas, teríamos aí uma revolução copernicanano Estado e no direito, tal como ocorreria hoje se conseguíssemos socializar a revolução burguesa? Se a resposta é sim para a revolução ocorrida no direito, não seria incoerente pensar que o direito de poucos poderia se transformar no direito de muitos, já que não seria o direito de todos?

No Brasil, para a maioria, infelizmente, o direito nunca influiu e nem fez refluir o estado de precariedade em que se encontra a vida e suas condições de sobrevivência – de modo semelhante, pode-se dizer que, se o direito influiu, foi negativamente, pejorativamente, autoritariamente, segregando os "sem-direito e sem-poder" e apartando-os ainda mais da vida pública. Para estes (para nós), sempre se operou a regra do Estado Mínimo, e com essa fórmula o mínimo virou um nada, a ausência total, a indiferença, a pilhagem, a pilhéria, o cinismo, a autorização para que poucos promovessem uma constante apropriação indébita dos meios de produção da vida. E aí, é claro, não há direito à vida, porque, para quase todos, só restou um Estado de Injustiça Social.

O Estado brasileiro faz pensar que, realmente, temos um Deus e um Diabo na Terra do Sol, nos rincões do Brasil pobre – e ainda é preciso ressaltar que o Diabo é poderoso porque não é maniqueísta (certo versuserrado, direito x não-direito, justo x injusto). E sabemos disso porque Ele povoou o inferno com boas intenções.

Para todos os efeitos, precisamos mais do que boas intenções para chegar à justiça - é sabido e reconhecido que não há justiça sem um mínimo de equilíbrio entre a política e o direito.


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Direito e Justiça: mito, crença ou ingenuidade?Por isso, quando se trata de Brasil, de fato e de direito, toda forma de equilíbrio parece perdida. Para reforçar a afirmação, pensemos no nosso desafio histórico: precisamos de meios para edificar os direitos sociais no interior do Estado Patrimonialista, uma estrutura jurídica e administrativa em que o servidor público ainda é um servo dos interesses particulares. Certamente, não se trata de tarefa fácil (que se realize do dia para a noite) construir o Estado Democrático de Direito Social, uma organização política e popular em que os direitos sociais e trabalhistas são garantidos, assegurados, sob o statusde direitos fundamentais.

Para nós, portanto, não é exercício teórico, mas sim prático (de acordo com a própria história das instituições públicas) indagar: se o direito é justo por definição (seguindo-se os princípios gerais do direito), como explicar a vigência de leis injustas? Nesta contradição, qual dos pólos deverá prevalecer? Seria esta a motivação jurídicada chamada Desobediência Civil? Então, haveria mesmo razão em se falar de um direito justo e outro injusto?

Um caminho explicativo, uma forma de entendimento dessa contradição, revela-nos que o problema está na objetivaçãodos princípios gerais do direito (justiça, eqüidade), na fase legislativa da formulação da lei, pois é nesse lapso temporal e epistemológico que agem a política e os interesses individuais, dos grupos ou das classes. Neste lapso, neste interregno do processo, vontades menores, procedimentos amesquinhados, egoístas, de escamoteamento, classistas, interferem negativamente nos assuntos de Estado e prejudicam a definição e a concretização da multiplicidade na unidade global. Por isso, a questão central deve-nos levar a discutir o nivelamento em que se opera a atividade política, seus níveis de envolvimento, parcerias, barganhas, trocas e organização, bem como as formas sociais, institucionais, jurídicas, morais e culturais necessárias ao controle e regulação do próprio realismo político.

Trata-se de não menosprezar e nem de sobrevalorizar a política, mas sim de buscar o equilíbrio entre o que se requer originariamente e os próprios resultados obtidos, entre o ideal da justiça e a efetividade da lei, entre o direito (universalidade) e a política (autonomia). Trata-se, no fundo, de controlar toda forma de subsunção do público ao privado, elevando-se o poder político a um maior grau de juridicidade. Trata-se de aniquilar institucionalmente, juridicamente, politicamente, culturalmente, toda forma de apropriação individualista da referência pública. No Brasil, mais do que nunca, trata-se de erradicar as raízes do Estado Patrimonial, driblando a astúcia e aprisionando os assaltantes do poder: todos aqueles que fazem do poder comum algo incomum.

Assim, tendo-se em conta nosso legado privatistado Estado e do direito, o que será mais revelador dessa ideologia, acreditar no direito como justiça ou no fato de que bastam as garantias institucionais para que o direito seja referendado, autorizado, aplicado? O que será mais prejudicial à consciência de cada um e à própria sociedade civil, a privatização dos resultados no âmbito e no transcorrer da atividade política (ação legislativa) ou a carência de um credenciamento do direito público? Tendo-se em conta que o direito deve ser crítico e criticado, o que embotará mais o pensamento e a ação comum do que os mitos, crenças ou ingenuidades, especificamente acerca da função social do Poder Judiciário? Pois, não é a ingenuidade que abre brechas à ação injusta?

Se assim é, como produzir uma cultura jurídica popular que redirecione o direito ao combate ao individualismo(21), à ingenuidade, ao espontaneísmo(22), ao amadorismo, quando se tratar da defesa do interesse público? Do contrário, considerando-nos sem nada para fazer, vamos apenas observar em vão?

Assistir à avalanche do passado, no presente adormecido, é ver revelar-se um futuro inequívoco – pena que os (ir)responsáveis não estejam mais presentes. A eles, há muito, deveríamos ter dito claramente, reiteradamente, explicitamente(23): além da reserva legal, precisamos de justiça social.

Afinal, não é extremamente injusto que o direito não exista, justamente (principalmente), para quem mais precisa, para quem trabalha de sol a sol?É isso, quem mandou só ter Deus e o Diabo na Terra do Sol ... onde estão os homens, as mulheres e as crianças? Estão esperando o Deus-Sol?


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Notas01. Lembrando-se que a teoria de Miguel Reale não rompe os limites do chamado monismo estatal: uma vez que a soberania legislativa continua reduzida ao Estado.02. Direito é poder: toda relação jurídica é uma relação pautada numa relação de poder ou força anterior, que a precede. E ainda que o monopólio coercitivo do Estado seja limitado pela regra da bilateralidade da norma jurídica, em essência, é a política quem comanda, e não necessariamente o direito, o certo, o justo, o requerimento legítimo etc.

03. Porque a negação desses direitos implica na negação da idéia de unidade global, conceito caríssimo ao estudo do Estado. Simplesmente, trata-se da saúde e da educação públicae sua negação corresponde a grave ofensa a direito humano fundamental (o fundamental está empregado aqui como oposto, por exemplo, ao direito à propriedade) e inexpugnável.

04. Baseadas na disposição e imposição de barreiras sociais e pessoais artificiais, como se a natureza primasse pela negação da autonomia, isonomia, autarquia e igualdade de direitos e de legitimidade.

05. Mais diretamente, trata-se dessas artimanhas judiciais que teimam em varrer a justiça da prática forense e do cotidiano dos mais pobres.

06. Destaca-se a previsão orçamentária nos três níveis da federação para saúde e educação, e seu descumprimento sendo arrolado como crime de responsabilidade.

07. O próprio José Afonso enumera os artigos conectados a esse fim, na Constituição Federal: arts. 10; 14 I a III; 29, XII e XIII; 31, 3º, 49, VX; 61, 2º, 198 III; 204, II (conf. nota 60, p. 119).

08. Uma educação técnica sem dúvida, mas a essa altura um ensino público (popular, massivo), gratuito, obrigatório e de qualidade.09 .A liberdade de comprar e vender a si mesmo?

10. É conhecida a referência pejorativa de que o Estado é o escritório da burguesia (Marx, 1993).

11. As estatísticas sociais são ruins, mas a realidade é pior.

12. Entende-se como reconhecimento, defesa e promoção dos direitos humanos.

13. Conceito em que os aspectos jurídicos preenchem somente um requisito inicial, pois que se objetiva a conquista e a afirmação da autonomia.

14. O ditado popular nos diz que: manda quem pode, obedece quem tem juízo.

15. A autonomia como efetivação de um valor universal, agora abrangendo todos os indivíduos, sem qualquer tipo de restrição de classe, seja motivado por condição econômica, social, cultural, seja de nascimento, cor, sexo, política, ideologia ou qualquer outra que caracterize preconceito, discriminação. O que é diferente da suspensão dos direitos políticos de presos, em um exemplo concreto.

16. Uma idéia de soberania resumida na regra de Lincoln: o governo do povo, pelo povo e para o povo.

17. Nação vem de nascere: a própria idéia da origem ou do nascimento da unidade global.

18. Temos aqui o incremento de uma necessária juridicidade (controle jurídico) do poder público (político), garantindo-se ainda: a) seguridade e fruição dos direitos individuais; b) separação dos poderes; c) império das leis. Posteriormente, dir-se-ia que seria o império do direito, não sendo suficientes só os aspectos formais da legalidade – e aí se destacaria o princípio da legitimidade do poder e da própria lei.

19. Vale destacar que aqui não repousa nenhuma ingenuidade ou miopia ideológica, pois queremos sublinhar que a fonte primária/primeira do direito assim entendido é o conjunto das necessidades/demandas sociais/populares (não só o Estado, portanto) e que não se limita à defesa da propriedade. Pois, no Estado Democrático de Direito, é necessário destacar/definir a idéia da função social da propriedade.

20. Em resumo: vimos como o processo histórico transmutou o dever de obediência em garantia dos direitos, e assim se exige do Estado o dever de assegurar/garantir os direitos da pessoa humana. Destacando-se que os direitos sociais seriam parte integrante e ativa (nuclear) dos direitos fundamentais.

21. Basta lembrar o mito liberal constitucional que transforma os direitos políticos em cláusulas pétreas, mas que também relativiza, flexibiliza, retira, subverte, relega os direitos sociais e trabalhistas.

22. É o caso do fulano que quer ser mais realista do que o rei, ou seja, a ansiedade e a obtusidade que levam o iniciante a aplicar doses maciças de moralismo ou de ativismo, e bem maiores do que a realidade dos fatos pode comportar.

23. No popular: aos berros!


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

PODRE (Agosto de 2010)


Corrupção e falhas de gestores públicos custam R$ 1,8 bilhão por ano ao Estado
Atos de improbidade por parte de autoridades, incluindo enriquecimento ilícito, má gestão e prejuízo ao Erário, custam ao Estado de São Paulo pelo menos R$ 1,8 bilhão por ano. Só a Promotoria do Patrimônio Público e Social cobra R$ 32,1 bilhões de gestores públicos, com base em 764 ações, de dezembro de 2002 até dezembro de 2009. Por conta delas, já há R$ 5,94 bilhões bloqueados pela Justiça para ressarcir o Tesouro.
Os dados constam de documento divulgado pela Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo e levam em conta exclusivamente ações abertas na capital, com base na Lei 8.429/92. No entanto, o texto não aponta os nomes de alvos que a promotoria fustigou nos tribunais.
Os promotores cobravam anteriormente R$ 34,2 bilhões, mas esse valor foi reduzido porque 25 ações que miravam R$ 117,4 milhões foram extintas sem julgamento de mérito e também porque a Justiça declarou improcedentes definitivamente outras 59, que tratavam da recuperação de R$ 1,89 bilhão. Estão em curso 337 ações que pleiteiam R$ 22,7 bilhões. Sobre essas ações ainda não há decisão judicial. São 211 as ações consideradas procedentes, mas ainda não de forma definitiva, e elas apontam para uma cifra de R$ 8,26 bilhões. Outro R$ 1,1 bilhão envolve 33 ações em execução e 71, julgadas improcedentes não definitivamente.
O relatório foi apresentado na abertura do 1.º Congresso do Patrimônio Público e Social do Ministério Público de São Paulo, evento da Procuradoria Geral de Justiça e da Escola Superior do MP, que reúne promotores e magistrados que se dedicam a combater a corrupção e desvios na administração. "Esses números nos dão um quadro da gravidade da situação que enfrentamos no desempenho de nosso papel constitucional de guardiães da lei e da moralidade pública", declarou o procurador-geral, Fernando Grella Vieira. Para ele, a instituição "tem feito um esforço muito grande no sentido de combater as práticas ilegais e imorais dos agentes públicos, buscando a punição dos responsáveis, na forma da lei, de forma a desestimular a malversação do dinheiro público e inibir futuras posturas de improbidade administrativa e de corrupção".
O dossiê foi preparado pelos promotores Saad Mazloum e Silvio Antonio Marques, secretários executivos da Promotoria do Patrimônio, braço do Ministério Público que investiga improbidade. Mazloum e Marques são especialistas nessa função. Nos últimos dez anos, eles e seus colegas conduziram as principais investigações contra prefeitos, secretários municipais e estaduais, presidentes de autarquias e ex-governadores.
Cadastro. O relatório divulgado por Grella mostra que, em São Paulo, há 510 processos cadastrados vinculados ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). O total de condenações perante a Corte paulista é de 1.048. São resultados das ações propostas pelo Ministério Público Estadual. Ainda de acordo com o dossiê apresentado pelo procurador-geral, o número de processos vinculados ao Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF-3), oriundos de ações ajuizadas pelo Ministério Público Federal em São Paulo e Mato Grosso do Sul, chega a 7. O total de condenações pelo TRF-3 soma nove.
Do total de condenações por ato de improbidade administrativa na esfera estadual, 1.299 tiveram enquadramento no artigo 11 da lei, que trata sobre os atos que atentam contra os princípios da administração pública - honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. As condenações pelo Artigo 10, dedicado aos atos que causaram prejuízo ao Erário, somam 1.299. Por último, aparecem as 652 condenações pelo Artigo 9 - auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade.



sexta-feira, 20 de agosto de 2010

JUSTIÇA, DIREITO ETC., ETC., ETC.


Indefinição sobre o pré-sal diminui a segurança jurídica

As incertezas técnicas, logísticas, financeiras e regulatórias que cercam a exploração do petróleo da chamada camada pré-sal já afetam também a segurança jurídica dos investidores nas futuras operações. As dúvidas e impasses sobre o funcionamento da complexa atividade, alguns deles já questionados na Justiça, trazem debates sobre fuga de capital para outros países e contribuem para aumentar a insegurança jurídica.
"Estamos aguardando a definição do quadro geral para avaliar. As indagações pendentes trazem resistência às mudanças, que devem ser feitas, mas com cuidado e debate", afirma a advogada Marilda Rosado, professora de Direito do Petróleo e Gás, diretora da Association of International Petroleum Negotiators (AIPN) e sócia do Doria, Jacobina, Rosado e Gondinho Advogados.
Segundo ela, já existem competitividade e atrativos para investir no pré-sal de países da África. "Como o quadro demora a se delinear, os investimentos podem ser direcionados para outras áreas", diz Marilda Rosado. As polêmicas no campo jurídico são muitas. A primeira e mais comentada até agora é a distribuição dos royalties do petróleo, ainda em tramitação no Congresso Nacional e alvo de ações no Supremo Tribunal Federal (STF). Na última semana, a ministra Ellen Gracie, do STF, negou dois pedidos de liminares contra a divisão. Para ela, os pedidos eram abrangentes e buscavam suspender a tramitação de toda a matéria. "O tema permanece ainda sob o natural campo dos debates políticos", afirmou a ministra.
As emendas já aprovadas na Câmara e no Senado visam a redistribuir, para todos os estados e municípios da Federação, os royalties pagos pela exploração de petróleo -incluindo a camada pré-sal. Com isso, as participações ou compensações previstas na Constituição não caberão apenas aos estados e municípios afetados pela atividade de extração petrolífera. Marilda Rosado, que participa hoje do 1º Seminário Brasileiro do Pré-Sal, disse que o dispositivo é inconstitucional e deve ser derrubado no Supremo.
Outro ponto controverso em discussão, de acordo com a professora, é a possível adoção de um novo modelo de contrato: saem os de concessão e entram os de partilha de produção. Rosado explica que nos contratos de concessão o estado fica com os tributos e os royalties. Já no de partilha, o governo fica também com uma parte do óleo para vender. "A estrutura é mais complexa e menos transparente de se administrar e fiscalizar. Além disso, não necessariamente os países ganham mais com os contratos de partilha de produção", opina.
O projeto, ainda não aprovado, de criar mais poderes para a Petrobras, que operaria todos os contratos, também é alvo de críticas. "A maneira como isso será feito não está clara", diz a especialista. A cessão onerosa, matéria polêmica nessa semana, também é vista com cautela. "Nem o governo sabe ainda o preço do barril do petróleo", destaca a advogada. Reportagens publicadas pela imprensa deram conta de que o valor ficaria por volta de US$ 10, notícia negada ontem pela Petrobras, que disse que "qualquer discussão sobre o valor dos barris da cessão onerosa é mera especulação". A cessão onerosa é uma forma de capitalizar a estatal.
No início de agosto foi sancionada a lei que cria a Pré-sal Petróleo S.A., estatal que irá gerenciar a exploração do petróleo do pré-sal. A empresa terá como objetivo gerir os contratos de partilha de produção e de comercialização de petróleo, gás natural e outros hidrocarbonetos. A execução das atividades de exploração, porém, não será de responsabilidade da estatal. Ela também terá como função monitorar e auditar a execução dos projetos de exploração e os custos e investimentos relacionados aos contratos de partilha de produção.
Para Rosado, a criação da nova estatal leva a questionamentos sobre a competência dos órgãos estatais. "É gente demais: Petrobras, Pré-sal Petróleo, Agência Nacional do Petróleo (ANP) e órgãos ministeriais. Não estão claras as competências de cada um e parece existir a duplicação de funções. Quando existir um conflito, qual entidade governamental vai arbitrar?", indaga.
Se o presente é incerto, há segurança no futuro. A garantiria foi dada nessa semana pelo advogado-geral da União, Luís Inácio Adams. Ele afirmou que a exploração do pré-sal terá segurança jurídica. "Diante das várias perspectivas de exploração e da multiplicidade de fatores que envolvem este assunto, temos capacidade de responder às demandas de maneira juridicamente segura e com resultados efetivos para os agentes que participam deste processo", afirmou o ministro, segundo informações da Advocacia Geral da União.
As incertezas técnicas, logísticas, financeiras e regulatórias que cercam a exploração do pré-sal já abalam a segurança jurídica dos investidores no projeto. Segundo a advogada Marilda Rosado, especialista em petróleo e gás, as polêmicas no campo jurídico vão da distribuição dos royalties a detalhes sobre o novo modelo de contrato, que deve ser de partilha, não de concessão.
Ontem, a ANP informou que recebeu o relatório preliminar da Gaffney Cline sobre a certificação dos reservatórios que serão usados na capitalização da Petrobras. E a estatal informou que o ministro das Minas e Energia, Márcio Zimmermann, disse à empresa que "em nenhum momento deu declaração assertiva a respeito da valoração dos barris da cessão onerosa".


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

LIMITES AO CÓDIGO


O novo Código de Ética Médica e os limites impostos pelo Judiciário
Entrou em vigor neste ano o novo Código de Ética Médica, depois de vinte anos de vigência do anterior. Segundo informações do conselho responsável pela classe, é um documento atento às determinações da medicina brasileira do século 21, bem como aos avanços tecnológicos, científicos, à autonomia e direitos do paciente.
Comporta ao todo 25 princípios fundamentais, entre os quais o de que a medicina não pode, em nenhuma circunstância, servir ao comércio. Princípios e diretrizes que trazem, em síntese, temas espinhosos para a rotina de profissionais que atuam constantemente sob pressão por resultados, pela manutenção do sigilo e pela cobrança por responsabilidades. Assuntos delicados que, inúmeras vezes, rompem a barreira dos consultórios e chegam aos tribunais. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui vasta jurisprudência sobre os diversos aspectos envolvendo o tema.
O médico, por exemplo, não deve revelar sigilo relacionado a paciente menor, inclusive a seus pais ou representantes, desde que esse tenha capacidade de discernimento e quando o segredo não acarreta dano ao paciente.
O profissional também não pode revelar informações confidenciais obtidas quando do exame de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresas ou instituições, salvo se o silêncio colocar em risco a saúde dos demais empregados ou da comunidade. E, ainda, tem a obrigação de avisar ao trabalhador eventuais riscos à saúde advindos de sua atividade laboral.
É vedado, assim, revelar fatos obtidos por desempenho da função, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento por escrito. Na investigação de suspeita de crime, por exemplo, o médico estará impedido de revelar assuntos que possam expor o seu cliente a processo penal.
Essa é a situação de um caso a ser julgado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em que a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul pede o trancamento de investigação contra centenas de mulheres suspeitas de fazerem aborto em uma clínica de planejamento familiar, em Campo Grande (MS). O argumento é que a instauração do inquérito não é calcada em prova válida, já que as fichas médicas estariam acobertadas pelo sigilo.
A regra informa que, quando requisitado judicialmente, o prontuário é disponibilizado a um perito médico nomeado pelo juiz. O STJ já julgou inúmeros casos de solicitação de quebra de sigilo feita por requisição de autoridades judiciais. O sigilo, porém, não é absoluto e existe para proteger o paciente.
Foi esse o posicionamento da Corte em um processo em que a instituição se recusava a entregar o prontuário para atender a uma solicitação do Ministério Público, com vistas a apurar as causas de um acidente registrado como queda acidental. No curso de outra investigação criminal, em que o órgão solicitou informações para apuração de crime, a Segunda Turma decidiu que detalhes quanto ao internamento e período de estada para o tratamento não estão ao abrigo do sigilo.
O conselho também recomenda não permitir o manuseio e o conhecimento dos prontuários por pessoas não obrigadas à reserva profissional. O STJ tem julgados que asseguram que a simples entrega de prontuário médico sem autorização do paciente é fato que, por si só, gera dano moral (AG 1.064.345).
Em uma das ações, o Tribunal considerou que houve dano à viúva em consequência da entrega do prontuário do marido falecido à empresa seguradora responsável pelo plano de saúde do paciente. Os ministros, na ocasião, consideraram que houve violação à ética e que, no máximo, poderia ser fornecido um relatório justificando o tratamento e o tempo de permanência do segurado no hospital.
A Corte também considera que o profissional não pode deixar de expedir laudo quando o paciente for encaminhado para continuação de tratamento em outra unidade da federação. Julgado do STJ registra caso de uma paciente do Rio Grande do Sul que sofreu acidente nas ruas de Brasília e teve de recorrer à via judicial para ter acesso ao diagnóstico, bem como a todas as informações sobre o tratamento no período que ficou internada na cidade. Foram quase trinta dias de coma desassistida de familiares. Segundo o STJ, nesses casos o hospital responde pelo ônus da sucumbência – prejuízo por todos os custos com o processo, além de possíveis danos morais.
De acordo com o artigo 154 do Código Penal, a violação do segredo profissional gera detenção de

três meses a 1 ano ou multa. Além de observar o sigilo, o médico deve observar o dever de informar o paciente e obter o seu consentimento a respeito de determinada conduta que pretende aplicar. São princípios também adotados pelo novo Código de Ética da Medicina brasileira. E, segundo o STJ, o médico que deixa de informar o risco de um procedimento recai em negligência e responde civilmente pelos danos decorrentes da lesão.
Exames complementares:
Se o sigilo é um assunto que afeta a intimidade do paciente, a responsabilidade é uma questão que afeta diretamente a vida. A jurisprudência sobre o tema registra casos de médicos que, seja por negligência, imprudência ou imperícia, cometem erros graves no exercício da profissão, como inverter o laudo radiográfico na mesa cirúrgica e operar o lado oposto do cérebro do doente ou fazer tratamento para um tumor quando se tratava de uma infecção por vermes. Isso sem contar as agulhas esquecidas. De 2002 a 2008, por exemplo, a quantidade de processos envolvendo erro médico que chegaram ao STJ aumentou 200%.
Um diagnóstico errado acarreta um transtorno psicológico que gera danos morais, estéticos e patrimoniais, além de punição no âmbito penal e disciplinar. O STJ julgou responsável por má prestação de serviço laboratório que forneceu equivocadamente laudo positivo de uma doença sem a ressalva da exigência de exames complementares para comprovação dessa doença.
O Conselho Federal de Medicina recomenda, em seu Código de Ética, que nenhum médico pode se opor a uma segunda opinião e que o paciente tem o direito de ser encaminhado a outro profissional como forma de assegurar o tratamento. Uma estudante de Direito moveu ação de reparação de danos em razão de o laudo radiológico ter errado na formulação do diagnóstico: ela apresentava pneumonia dupla e o profissional ignorou o fato, causando graves consequências posteriores.
A responsabilidade médica, assim como acontece com outros profissionais liberais, é de meio, exceto nas cirurgias plásticas embelezadoras, em que o profissional se compromete com o resultado final. Isso porque o médico não pode garantir a cura, assim como o advogado não pode garantir uma causa, ou o publicitário, vendas líquidas e certas. Mas o médico deve agir com diligência, que é o agir com amor, cuidado e atenção – somada à perícia e ao conhecimento.
Segundo o autor Miguel Kfouri Neto, na publicação “Responsabilidade Civil do Médico”, os processos visando à apuração de responsabilidade por erro médico tem tramitação longa e são de difícil comprovação. “É recomendável que os juízes imprimam especial celeridade a esses feitos, colhendo as provas ainda na flagrância dos acontecimentos”, recomenda.
Os médicos, diferentemente dos hospitais, só respondem diante de culpa e mediante um nexo de causalidade (relação clara de causa e efeito). As instituições hospitalares têm a chamada responsabilidade objetiva, isto é, respondem independentemente de culpa ou nexo causal. De acordo com o Código do Consumidor, é o lesado quem deve provar o dano que tem nas relações contra os fornecedores de serviço, mas, no caso desses profissionais, não é assim que acontece.
Como, no caso, é o médico que detém o conhecimento necessário sobre o ato, o ônus da prova pode ser invertido, de modo que o prejudicado possa apenas apresentar o resultado danoso. De acordo com o STJ, essa inversão não é automática e cabe ao juiz justificá-la. (Resp 437.425)
Prazo de cinco anos:
As ações para apuração de falhas médicas podem ser propostas perante os conselhos regionais, para as punições disciplinares, ou na Justiça comum, para punição no âmbito civil ou penal, no foro de domicílio do autor. O prazo para propô-las, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor, é de cinco anos, embora o artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil, imponha um prazo de três anos. Para eventos anteriores a 11 de janeiro de 2003, o prazo é de vinte anos.
Outra decisão importante do STJ sobre o tema “responsabilidade” é que a União não possui legitimidade para figurar no polo passivo de ação em que se objetiva danos morais decorrentes de erro médico ocorrido em hospital da rede privada, durante atendimento custeado pelo SUS.
Em contrapartida, a prestadora de serviços de plano de saúde tem legitimidade passiva para figurar em casos de indenização por erro médico. Foi o que garantiu uma decisão da Quarta Turma, em julho, em favor de uma paciente que foi internada para fazer coleta de um material num dos seios e teve as duas mamas retiradas sem o seu consentimento.


REsp 494206 - Resp 629212 - Resp 717900 - Resp 467878 - Ag1269116
Resp 605435 - Resp1051674 - Ag 818144 - Resp 696284 - RMS 14134 HC140123 - Resp 540048 - RMS 11453 - Resp 159527 - Ag 1064345
Resp 1133386 - Resp685929

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

DIREITO E MARXISMO


Na ciência, tal como na vida, ainda está muito em moda mudar-se o nome das ruas em vez de se trocarem as pedras, ou pintar de vermelho as paredes velhas que estão caindo em vez de reconstruí-las. Petr Ivanovich Stucka Introdução O objetivo deste trabalho é apresentar uma crítica à visão marxista do direito, apresentando-o a partir de uma análise teórica materialista, como fruto das relações sociais e não como mera produção estatal. Pretende mostrar também a complexidade de apreensão do fenômeno jurídico, apresentando seu caráter múltiplo, que só pode ser apreendido a partir de uma visão dialética da realidade. Apresento a ideia de que ele tem um papel estruturador e orientador destas relações sociais, sendo um instrumento que teve um papel importante na ascensão da burguesia ao poder. Os marxistas devem se apropriar desse instrumento para seus objetivos táticos e estratégicos, utilizando o manancial teórico marxista para transformar o direito, rompendo com o positivismo jurídico e aproximando-o da realidade social e tornando-o um instrumento capaz de apreender toda a complexidade da produção e reprodução dos seres humanos organizados em sociedade. A visão marxista do direito A visão mais difundida no meio marxista acerca do direito é a que – por ser ele parte da superestrutura - o toma como mero reflexo das relações econômicas da sociedade. O modo produção da vida material condiciona a vida social e política, sendo, em última instância, o determinante absoluto do direito. Os defensores de tal concepção costumam justificar seu entendimento numa exposição de Engels em sua obra A "Contribuição à Crítica da Economia Política" de Karl Marx, que diz: "Na produção social de sua vida, os homens constroem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção formam a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral". (Marx e Engels, "Obras escolhidas", volume 1, p.301). Essas palavras tornaram-se um dogma para os marxistas. Tal vezo fez com que a ciência marxista ficasse estagnada no campo do direito, restringindo-se a uma área exclusiva dos intelectuais burgueses. Com o tempo esse entendimento foi sendo combatido. O próprio Engels questiona a maneira equivocada como suas palavras e as de Marx foram interpretadas. Marcus Vinícius Martins Antunes, em seu ensaio Engels e o Direito, utiliza a seguinte passagem de Engels: "Se alguém tergiversa dizendo que o fator econômico é o único determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata, absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores da superestrutura que sobre ela se levantam – as formas políticas e a luta de classes e seus resultados, as Constituições que, depois ganha uma batalha, a classe triunfante redige, etc., as formas jurídicas, e inclusive os reflexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as idéias religiosas e o desenvolvimento ulterior destas até convertê-las em um sistema de dogmas – exercem também sua influência sobre o curso das lutas históricas e determinam, predominantemente em muitos casos, sua forma. ("Fios de Ariadne – Ensaios de interpretação marxista", Editora UPF, p.36). Há uma série de juristas que entendem o papel que o marxismo pode ter no desenvolvimento do direito, mas todos apontam que precisamos primeiramente romper com a visão dogmática sobre o direito. Fabio Coelho Ulhoa, em seu livro Direito e Poder, questiona essa visão dogmática por parte dos marxistas: "Essa equação reducionista, esse economicismo, é uma deturpação simplificadora do marxismo marxista O modo de produção existente em uma sociedade é a sua base real no sentido de que condiciona as demais relações sociais. Não as determina, por certo; apenas a condiciona. As manifestações do espírito humano possuem o que se costuma chamar de relativa autonomia, de uma lógica interna que não se consegue entender apenas com o reporte às condições materiais da vida social". (Coelho, 2005: 08). Mais adiante, Coelho diz: "Pela redução voluntarista, o Direito é visto como mera expressão dos interesses da classe dominante. Ignora-se, nessa perspectiva, o papel que as classes dominadas desempenham na história e a própria dinâmica da luta de classes. O Direito acompanha, com maior ou menor proximidade, os movimentos dessa luta. As concessões localizadas da burguesia e os avanços e as conquistas do proletariado estão presentes no condicionamento da produção normativa. Além disso, a classe dominante possui suas segmentações, seus projetos diferenciados, que compõem uma complexa rede de interesses, impossível de ser sintetizada na idéia de um Direito que atenda exclusivamente aos de uma classe social apenas. (Coelho: 2005, 8-9). Além de rever nossa posição em relação ao direito, teremos de desfazer a imagem negativa que temos entre os juristas progressistas, buscando uma aproximação com esse seguimento da intelectualidade que terá um papel estratégico na edificação de um Estado democrático e inovador de suas instituições. Entendo que o caminho para isso é único, retomar a essência do marxismo, que nada tem a ver com o dogmatismo. O marxismo é uma teoria viva, não é um materialismo mecânico, que entende que a consciência social fica reduzida às condições econômicas. Karel Kosik, em sua obra Dialética do Concreto, questiona esse reducionismo e diz: "Ao contrario, a dialética materialista demonstra como o sujeito concretamente histórico cria, a partir do próprio fundamento materialmente econômico, idéias correspondentes e todo um conjunto de formas de consciência. Não reduz a consciência às condições dadas; concentra a atenção no processo ao longo do qual o sujeito concreto produz e reproduz a realidade social; e ele próprio, ao mesmo tempo, é nela produzido e reproduzido." (Kosik, 995, 124). Então não podemos partir de um "único determinante", pois assim estaremos negando a própria essência do marxismo. Cometemos, assim, um grande erro. Ao reduzimos o objeto que estudamos, por óbvio, chegamos a conclusões imprecisas. Entendo que um dos principais erros cometidos por nós marxistas ao analisar o direito é o fato de tomá-lo isoladamente da sociedade. Ao entender o direito como algo fora, ou acima, da sociedade, esquecemos que ele é obra dos seres humanos. Apegamo-nos à forma jurídica – a lei tomada isoladamente - e nos esquecemos do conteúdo - as relações sociais apreendidas na complexidade de todas suas dimensões. A extinção do direito Essa visão parcial do direito nos levou a um equivoco que estagnou o pensamento marxista no campo jurídico. Ao entendermos o direito simplesmente como a forma jurídica, adotamos uma visão positivista do direito [01], aquela que entende que só o Estado produz o direito. Então partimos para uma solução mecânica que pode ser resumida na seguinte fórmula: se nosso objetivo estratégico é a extinção do Estado e só este cria o direito, nossa relação com o direito já está determinada – só nos resta aniquilá-lo, ou seja, o fim do Estado é igual ao fim do direito. Fica evidente, então, a influência redutora do positivismo jurídico na percepção marxista do fenômeno jurídico. Esta armadilha positivista – que só é direito o que é elaborado pelo Estado - construída pela burguesia logo após derrubar o poder feudal, enredou o pensamento marxista no positivismo jurídico de tal forma que o horizonte do direito para o marxismo ficou restrito a duas possibilidades, quais sejam: ou decretamos a morte do direito – já que queremos destruir o Estado –, ou criamos um positivismo "de esquerda" – já que a única forma de direito é o estatal –, a chamada "legalidade socialista". Essa visão tem limitado não só nossa ação no campo teórico, mas também no campo político, pois num período histórico onde os setores progressistas necessitam acumular forças para aproximar-se do objetivo estratégico, um mecanismo como o direito – que pode cumprir um papel estratégico na acumulação de forças – não pode ficar fora do horizonte político e teórico dos portadores de novas relações sociais. Devemos nos desarmar para enfrentar esse debate. As fórmulas e modelos só prejudicaram a teoria marxista. Para desenvolver o marxismo não basta dizer as mesmas coisas que foram ditas no passado pelos fundadores do marxismo, ou deixar de falar coisas novas porque eles não falaram. Precisamos analisar a realidade, ver o que mudou, quais são as características da atual fase histórica e, a partir delas, buscar alternativas baseadas nos princípios marxistas, não como dogmas, mas como fio condutor, como espinha dorsal de nosso pensamento. Infelizmente, ainda há aqueles que usam as obras dos fundadores do marxismo para impossibilitar a criação de qualquer tipo de formulação que não esteja "nos moldes" do que já foi escrito por Marx, Engels e Lênin. Num "apelo à autoridade", usam o argumento de que "Marx não escreveu sobre isso", "Lênin não disse tal coisa" e assim por diante. Tal forma de encarar o marxismo é incompatível com a postura científica de seus próprios fundadores. A complexidade da realidade mundial – em face da derrota sofrida pelo campo socialista - e as tarefas de reconstrução de um novo imaginário socialista, atualizado e em consonância com a realidade, cobram mais dos marxistas. A luta pela construção de um novo paradigma de enfrentamento das questões teóricas entre os marxistas já vem sendo travada em nosso meio em todo o mundo. Samir Amin nos apresenta uma grade contribuição para ajudar nossa corrente de pensamento a superar antigos vezos ideológicos. Para ele ser marxista na atualidade requer uma profunda mudança em nossa postura intelectual: "Para mim, ser marxista é partir de Marx e não se deter mele, ou em um de seus grandes sucessores da história moderna, seja Lênin ou Mao. Marxista e marxólogo são dois tipos diferentes. Partir de Marx significa partir da dialética materialista, sem para tanto considerar que todas as conclusões por ele tiradas do uso que ele disso fazia tenham sido necessariamente corretas em seu tempo, ou sejam hoje. Fazer isso significa transformar Marx em profeta, o que ele jamais pretendeu ser. Desmistificar Marx se impõe." (Samir Amin, 2010: 72). Tenho plena concordância com Samir Amin, devemos rever entendimentos tidos como inquestionáveis e trilhar caminhos que antigamente não foram explorados pelos fundadores do marxismo. A realidade histórica vivida por eles era diferente. Suas obras devem ser estudadas - e compreendidas – dentro de determinado período histórico, com uma realidade específica. Precisamos desenvolver o marxismo para que ele possa estar à altura dos desafios atuais, sendo um instrumental teórico capaz de transformar a realidade concreta e não um discurso vazio. E só conseguiremos cumprir essa grande tarefa se adotarmos uma postura crítica, criadora e antidogmática. Para entender o direito Devemos entender o direito como um fenômeno social de composição múltipla, não só sob a forma jurídica, mas sim sob a dimensão das relações sociais, como forma de produção e reprodução dos seres humanos em determinada sociedade. O direito deve ser diferenciado da lei, pois ele é muito mais que isso. A tentativa de igualar o direito à lei – e fazer crer que ele só pode ser criado pelo Estado - é uma construção da burguesia para fazer crer que toda a legislação é direito, ou seja, tem base nas relações sociais de determinada sociedade. Contrariando essa tese, Lyra Filho é enfático: "A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e AntiDireito, isto é, direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado, pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido". ( Filho, 1995: 8). A burguesia, com tal pretensão de igualdade, almeja "congelar" as relações sociais atuais, "anestesiando" a capacidade de crítica da sociedade frente a uma lei injusta, escondendo-a sob o manto da legitimidade jurídica do Estado, tentando fazer crer que as atuais relações sociais – baseadas na exploração – sejam imutáveis, como se fossem inerentes aos seres humanos e não uma construção historicamente determinada. Depois dessa distinção, é necessário que vejamos o direito não como algo com vida própria, à margem ou acima da sociedade, mas sim como algo construído pela experiência humana. Não se pode falar em direito desconectado da história de determinada sociedade, de suas forças produtivas, de seu desenvolvimento social, dos valores que lhe dão suporte, enfim, não se pode falar em direito apartado da existência humana. A sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações sociais. Essas relações se dão em diversos níveis e dimensões. Essas relações devem ser entendidas como o próprio produzir-se da vida dos seres humanos organizados em sociedade. Marcos Bernardes de Melo, no seu livro Teoria do Fato Jurídico, apresenta alguns elementos dessa cadeia de relações: "O ser humano, em situação normal, nasce no seio da família – o grupo social básico – e a partir daí tem início a moldagem de suas potencialidades no sentido da convivência social. A ampliação gradativa dos círculos sociais em que o homem se vê envolvido no desenrolar de sua existência faz crescer, proporcionalmente, o grau de influência que a sociedade exerce em sua formação. À medida que o indivíduo expande a área de seu relacionamento com os outros, participando de grupos maiores, como companheiros de brincadeiras, a escola, as congregações e comunidades religiosas, os clubes, e.g., aumentam também as pressões dos condicionantes sociais que procuram conduzir a sua personalidade conforme os padrões da sociedade. (Mello, 2007: 03). Note-se que os elementos apresentados por Mello deixam de lado as contradições de classes, mas isso não invalida a ideia acerca da complexidade das relações sociais. Na verdade os elementos que ele apresenta servem de base para a afirmação que ele fará em seguida no seu livro de que o direito é um instrumento de que a sociedade se utiliza para agir sobre o ser humano, com o escopo de inserir em sua personalidade os valores sociais dominantes na sociedade em que está inserido. O direito é o mecanismo que organiza as relações sociais, buscando ao mesmo tempo manter e direcionar essa sociedade. Manter o essencial para garantir sua continuidade e direcioná-la. Aqui se apresenta um elemento importante do papel do direito na construção da hegemonia em determinada sociedade, porque o direito tem um duplo aspecto, ele é influenciado pelas relações sociais e depois se volta para essas mesmas relações, dando-lhes direção. As três dimensões do direito Disse acima, que não podemos considerar o direito fora da sociedade em que ele é criado. Então, o mesmo não se apresenta como realmente é, mas de uma forma que esconde sua essência. O direito, que segundo uma apreensão restrita seria a lei, é apresentado como a vontade do Estado que, em apertada síntese, seria uma imposição das classes dominantes. Os marxistas não podem se apegar à aparência dos fenômenos, porque eles não se apresentam como realmente são. A dialética marxista é fundamental para enxergar por trás dos fenômenos, para superar sua aparência. Karel Kosik nos mostra a complexidade da apreensão dos fenômenos numa realidade fetichizada: "O complexo dos fenômenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera da vida comum da vida humana, que, com sua regularidade, imediatismo e evidência, penetram na consciência dos indivíduos agentes, assumindo um aspecto independente e natural, constitui o mundo da pseudoconcreticidade. A eles pertencem: - O mundo dos fenômenos externos, que se desenvolvem à superfície dos processos realmente essenciais; - O mundo do tráfico e da manipulação, isto é, da práxis fetichizada dos homens ( a qual não coincide com a práxis crítica revolucionária da humanidade); - O mundo das representações comuns, que são projeções dos fenômenos externas na consciência dos homens, produto da práxis fetichizada, formas ideológicas de seu movimento; - O mundo dos objetos fixados, que dão a impressão de ser condições naturais e não são imediatamente reconhecíveis como resultado da atividade social dos homens.(Kosik, 1995: 15). Com o fenômeno jurídico acontece o mesmo. O direito é apresentado como a forma jurídica, mas isso não corresponde à realidade concreta. Trata-se de uma falsa apreensão de sua natureza. Em sua complexidade, o direito possui três dimensões fundamentais que o compõem, quais sejam: a ciência jurídica – o ordenamento posto; a sociologia jurídica – os fatos que o geram; e a filosofia jurídica – os valores sociais e que lhes dão suporte. Cabe salientar que essas três dimensões não são estanques, havendo uma interpenetração entre as mesmas. Essas três dimensões formam o todo do fenômeno do direito. O direito, para ser entendido, deve ser observado sob a totalidade da experiência humana, e não como uma mera lei escrita, que seja fruto da vontade da classe dominante ou como um "ser com vida própria". É importante observar a opinião de Giusepe Lumia, que fortalece a visão do direito como um fenômeno com três dimensões e nos apresenta elementos importantes para uma melhor apreensão do que ele realmente é: "a) a experiência do entrelaçamento real das relações intersubjetivas disciplinadas por certo tipo de regras de comportamento que são as normas jurídicas; b) essas próprias regras, o modo pelo qual são criadas e se organizam em sistemas normativos mais ou menos complexos e estruturados; c) a atividade de aprovação ou desaprovação que assumimos diante de tais regras, segundo as consideramos ou não conforme as idéias que temos sobre o melhor modo pelo qual essas relações derivam ser reguladas." (Giusepe Lumia, 2003: 3-4). Destarte, também para Lumia, devemos entender o direito sob estes três aspectos que o determinam: a norma em si e sua elaboração; a realidade social que fundamenta o ordenamento jurídico e o sistema de valores que fundamentam esse ordenamento. Posto de outra forma, devemos observar o direito sob a dimensão científica, sociológica e filosófica. Não há como entender o direito – em face de sua complexidade enquanto fenômeno social – sem levar em consideração os três aspectos que o compõem. Em sua dimensão científica, temos a norma em si, como é feita a lei, seus requisitos formais e materiais e sua estrutura. Nessa dimensão só a lei e o processo legislativo são levados em consideração. Não importa, nessa dimensão, para que serve a lei, nem quais seus objetivos, só importa se na sua elaboração foram observados os requisitos para sua validade. A visão positivista do direito encerra o fenômeno jurídico nessa dimensão. Na dimensão sociológica, temos os fatos sociais, que são criados por seres humanos, pertencentes a classes sociais diferentes, temos as forças produtivas, entre outros aspectos. Nessa dimensão importam os motivos da criação da lei, quais seus objetivos e para que serve determinada lei. Tem preocupação com os conflitos sociais que compõem a sociedade. Na dimensão filosófica, temos os valores morais e políticos. Aqui precisamos perquirir os valores e as ideologias dos grupos que compõem dada sociedade, precisamos realizar a crítica das outras dimensões e construir um conceito do que é justo ou injusto em dada sociedade, enfim, a dimensão filosófica tem uma função axiológica, busca definir o valor específico que se busca no direito. A complexidade do fenômeno jurídico nos deixa claro que observá-lo apenas sob um desses aspectos nos levará – e tem levado – a uma apreensão equivocada do direito. Por isso defendo que o instrumental teórico marxista tem um papel importante na apreensão e superação dos limites do direito. Para se ter uma real apreensão do direito é necessário ir além da aparência dos fenômenos e buscar os valores sociais que sustentam o ordenamento jurídico de determinada sociedade, o grau de desenvolvimento da luta de classes e qual correlação de forças na esfera nacional e internacional, o grau de desenvolvimento das forças produtivas, a composição das instituições políticas e sociais. Somente com uma visão do todo teremos uma real apreensão do direito, conseguindo assim, a utilização de todo o seu potencial no desenvolvimento de determinada sociedade. Nesse sentido as palavras de Plauto Faraco de Azevedo são esclarecedoras: "A Metodologia Jurídica, para ser fecunda, deve orientar-se por uma concepção do direito, que seja capaz de integrar todas as suas dimensões. Como afirma Elias dias, "não se entende plenamente o mundo jurídico se o sistema normativo (Ciência do Direito) se insula e separa da realidade em que nasce e a que se aplica (Sociologia do Direito) e do sistema de legitimidade que o inspira e deve sempre possibilitar e favorecer sua própria crítica racional (Filosofia do direito). Uma compreensão totalizadora da realidade jurídica exige a complementaridade, ou melhor, a recíproca e mútua interdependência dessas três perspectivas ou dimensões que cabe diferenciar ao falar do direito: perspectiva científico-normativa, sociológica e filosófica." A não aceitação dessa complementaridade funda-se em uma perspectiva epistemológica injustificável, sujeitando a aplicação do direito a todos os azares, em virtude de separá-los do contexto histórico, em função de que existe e se aplica." (Azevedo, 1999: 23 e 24). O que é o direito O debate sobre o conceito do direito é antigo não só no meio marxista, mas também entre os intelectuais burgueses. Para eles é difícil chegar a um conceito, porquanto teriam que reconhecer o caráter político do fenômeno jurídico, algo que colocaria a baixo todo o "manto de neutralidade" que eles tentam fazer crer que existe no direito. No meio marxista o debate se desenvolveu em dois campos: o que entende o direito como fruto das relações sociais, portanto algo que existiu desde quando os homens passaram a se organizar em sociedade; e, o que entende o direito como um fenômeno que surgiu com a ascensão da burguesia ao poder, basicamente como a norma jurídica. Aqui reside um aspecto fundamental, pois dependendo do campo que o marxista se coloque terá um resultado diametralmente oposto sobre a importância do direito: a consequência do primeiro entendimento será a de que o direito continuará a existir, mesmo com o fim do Estado. Daí ser necessário estudá-lo e desenvolvê-lo, porquanto será um instrumento necessário para nossas táticas e estratégia. Já o resultado do segundo entendimento será necessariamente o de que a extinção do Estado levará ao fim do direito. Nesse caso não precisamos nos preocupar com ele, pois ele fenecerá junto com o Estado. Evgeny Bronislavoviv Pachukanis, grande jurista soviético, que foi Vice-Comissário do Povo para a Justiça da URSS, em sua obra principal, Teoria Geral do Direito e Marxismo, combateu a visão que entendia o direito como fruto das relações sociais. Defendeu que a questão central para os marxistas era desvendar norma jurídica e que o conteúdo material (as relações sociais) do direito era secundário: "O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente sob o ponto de vista do seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma história determinada. Se se recusa a analisar os conceitos jurídicos fundamentais, apenas se consegue uma teoria que explica a origem da regulamentação jurídica a partir das necessidades materiais da sociedade e, consequentemente, do fato de as normas jurídicas corresponderem aos interesses materiais de uma ou outra classe social."(Pachukanis, 1988: 21). Note-se que o que vai nortear a análise teórica de Pachukanis é o aspecto formal do direito – apenas uma de suas dimensões -, que na época da burguesia é a forma jurídica. Pachukanis chegou a mencionar a existência de "um momento jurídico" dentro das relações sociais. Esse elemento não foi devidamente explicado em sua obra, mas a relação com a forma jurídica é clara. Pachukanis [02] chegou dizer que o fim da forma jurídica seria o fim do próprio direito. "O aniquilamento das categorias do direito burguês significará nestas condições o aniquilamento do direito em geral, ou seja, o desaparecimento do momento jurídico das relações sociais." (Pachukanis, 1988; 27). Ao restringir sua análise apenas à forma jurídica, Pachukanis incorreu em um erro que limitou sua possibilidade de apreensão do fenômeno jurídico: deixou de lado a essência - as relações sociais - e se debruçou apenas sobre o fenômeno - a forma jurídica. A necessidade de combater o direito burguês foi levada ao extremo e, da mesma forma que Marx e Engels acentuaram o fator econômico como condicionante absoluto do processo da vida social – devido à luta que se estabeleceu contra os idealistas da época - a forma jurídica foi elevada ao fator principal do direito. Analisamos o que a burguesia criou e nos demos por satisfeitos, não fomos alem da aparência do fenômeno jurídico. Pettr Ivanovich Stucka [03] questiona a visão restrita do direito e defende sua relação direta com as relações sociais. Ele entende o direito como um sistema de relações sociais, utiliza a expressão "forma de organização das relações sociais" ao se referir ao fenômeno jurídico. E com o objetivo de mostrar que não está dissociado da teoria marxista ele usa a seguinte citação de Marx: "A um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas dos homens corresponde uma determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases do desenvolvimento da produção, do comércio, do consumo, correspondem determinadas formas de constituição social, uma determinada organização da família, das camadas sociais e das classes; numa palavra, determinada sociedade civil. A determinada sociedade civil corresponde determinado estado político, que não é mais do que a expressão oficial da sociedade civil." (Stucka, 1988: 26). Essas palavras comprovam que a concepção de que o direito tem por base as relações sociais não é nova entre os marxistas. O problema é que essa discussão foi retirada do nosso meio, causando um grande atraso no desenvolvimento da teoria marxista acerca do papel do direito. O ser humano não é produto simples da natureza, mas o resultado do convívio com outros seres humanos. Mais que isso, o ser humano precisa conviver em sociedade, não pode existir isoladamente, necessita do convívio social para continuar existindo. É nesse convívio social que o ser humano produz e se reproduz socialmente. Karel Kosik ao falar do caráter social do homem nos diz o seguinte: "Na produção e reprodução da vida social, isto é, na criação de si mesmo como ser histórico-social, o homem produz: 1) Os bens materiais, o mudo materialmente sensível, cujo fundamento é o trabalho; 2) As relações e as instituições sociais, o complexo das condições sociais; 3) E, sobre a base disto, as idéias, as concepções, as emoções, as qualidades humanas e os sentidos humanos correspondentes. Sem o sujeito, estes produtos sociais do homem ficam privados de sentido, enquanto o sujeito sem pressupostos materiais e sem produtos objetivos é uma imagem vazia. A essência do homem é a unidade da objetividade e da subjetividade." (Kosik,1995: 126/127). É, portanto, na complexidade do construir-se socialmente do ser humano que devemos buscar o direito. O direito é um fenômeno social, não existe por si, ao contrário, é obra dos seres humanos organizados em sociedade. Isso é fundamental para nossa compreensão, não importa o ser humano tomado isoladamente, mas sim integrado em sociedade. Uma regra, um princípio, uma pratica reiterada, só ganha relevância se estiver vinculada a vários seres humanos relacionados entre si. Devemos, portanto, buscar o direito nas relações sociais, como fruto dessas, com toda sua complexidade e antagonismos. Não há direito sem a existência dos seres humanos vivendo em sociedade. E foi a vida em sociedade que apresentou as circunstancias para que se criassem os primeiros elementos do que hoje é conhecido como direito. Friedrich Engels, em sua obra Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, nos mostra que mesmo as sociedades mais rudimentares possuíam regulamentação das relações sociais, formas de relacionamento entre as gens e tribos e entre seus componentes. Essa regulamentação, ou costumes, como escreveu Engels, orientavam os casamentos, a relação com a propriedade, o funcionamento das "instituições dirigentes", enfim, dava estrutura àquelas sociedades. Assim: "Em todas as gens há os seguintes costumes; 1. São eleitos o sachem (dirigente em tempo de paz) e o caudilho (chefe militar). O sachem deve ser escolhido dentro da própria gens e suas funções são internamente hereditárias,no sentido de serem imediatamente ocupadas em caso de vacância. O chefe militar pode ser escolhido fora da gens e, às vezes, seu posto pode permanecer vago. Nuca é eleito sachem o filho do anterior, dada a vigência do direito materno,segundo o qual o filho pertence a outra gens, mas são eleitos frequentemente o irmão do sachem anterior ou o filho de sua irmã. Todos, homens e mulheres, tomam parte da eleição. Mas ela deve ser ratificada pelas outras setes gens, e só depois de cumprida essa condição é que o eleito é empossado, pelo conselho comum de toda a federação iroquesa. (Engles: 70). "Nenhum membro da gens tem direito a casar-se no seio dela. Esta é a regra fundamental da gens, o vinculo que a mantém unida..." (Engles: 71). "A propriedade dos que faleciam passava aos demais membros da gens, pois não devia sair dela..." (Engles: 71). "Um conselho de tribo para assuntos comuns. Compunha-se dos sachens e chefes militares de todas as gens – seus legítimos representantes, porquanto podiam sempre ser depostos e substituídos. O conselho deliberava em público, diante dos demais membros da tribo, aos quais se permitia tomar a palavra e expressar sua opinião; o conselho é que decidia. Como regra geral, o conselho ouvia todo assistente que desejasse falar; também mulheres opinavam, através de um orador escolhido por elas." (Engles: 75). "O conselho tribal ficava encarregado, particularmente, das relações com outras tribos. Recebia e mandava embaixadas, declarava a guerra e concluía a paz." (Engles: 75/76). A exposição de Engels, ainda que sujeita às descobertas científicas posteriores na área antropológica, continua válida quanto à existência de normas diretivas nas sociedades primitivas, não no sentido que entendemos hoje, mas como orientações e princípios, aceitos pela coletividade com o objetivo de sua manutenção. Havia instituições representativas (conselhos), com normas de funcionamento e com eleições com regras preestabelecidas. Estes costumes representam uma estruturação e direcionamento daquelas sociedades, garantindo um mínimo de estabilidade para sua existência, permitindo, assim, a continuidade das mesmas. Os costumes representam o inicio do que veio a ser o direito. Pode-se falar que mesmo nas organizações sociais mais primitivas já existia o direito, entendido esse sob o aspecto que apresento. O próprio Pachukanis reconhece essa afirmação: "Se passarmos aos povos primitivos vemos aí certamente o embrião do direito, mas a maior parte das relações é disciplinada extrajuridicamente, por exemplo, sob a forma de preceitos religiosos." (Pachukanis, 1988: 42). O erro de Pachukanis reside em querer justificar a inexistência do direito nas sociedades primitivas pelo fato de que as normas de condutas eram "disciplinadas extrajudicialmente". Mais uma vez aparece a confusão entre o direito e a forma jurídica. Não podemos falar em extrajudicial e judicial naquelas sociedades, ela só podia se organizar dentro dos limites que seu desenvolvimento permitia, entretanto negar a existência de instrumentos de organização social - mesmo que rudimentares - é um grande equivoco. Nesse sentido Marcos Bernardes de Mello ressalta o entendimento de que o direito existiu mesmo em sociedades primitivas e de seu papel imprescindível para a organização social: "O brocardo jurídico ubi societas ibi ius [04] ressalta muito bem esse caráter necessário da ordem jurídica. O estado, por exemplo, nem sempre existiu e ainda hoje há grupos que desconhecem as estruturas e os entes estatais. Não se pode dizer, no entanto, que esses grupos não tenham sido ou não sejam sociedades humanas, embora em estágio embrionário ou em desenvolvimento. Todavia, mesmo nessas organizações sociais primitivas, onde são mínimas as carências em relação á convivência de seus integrantes, já se encontravam delineadas normas de adaptação social, as quais são respeitadas e impostas, até, pelo próprio grupo. Essas normas – que são jurídicas pela impositividade – podem ser bastante simples, mesmo rudimentares, mas nem por isso dispensáveis...sejam, porem, rudimentares ou refinadas, elementares ou complexas, simples ou prolixas, as normas jurídicas são indispensáveis e insubstituíveis, porque constituem o único meio hábil e eficaz de evitar o caos social e obter uma coexistência harmoniosa entre seres humanos." (Mello, 2007:07). Portanto, é essencial diferenciar o direito da forma jurídica, pois com essa diferenciação mudaremos nossa visão acerca de um importante instrumento na luta política. O primeiro envolve o produzir-se dos seres humanos em sociedade, sendo um instrumento que serve para garantir e estruturar as relações sociais, construindo uma coesão social, e por consequência não será extinto com o fim do Estado; o segundo, por sua vez, é a lei, é uma das manifestações do direito, foi criada pela burguesia quando ascendeu ao poder e não possui um caráter universal. O papel do Direito Uma visão reducionista reserva ao direito uma função meramente conservadora da ordem vigente, um mero instrumento de controle social, restringindo a utilização dessa ferramenta importante para a luta política. Busquemos analisar a forma como o direito foi apreendido e utilizado pela burguesia para a construção de uma sociedade que atendesse aos seus objetivos. Sua postura em relação ao direito foi fundamental para ascender ao poder. As palavras de Tigar e Levy são fundamentais para entender como eram considerados os mercadores dentro da sociedade feudal: "O lucro, ou a diferença entre o preço ao qual o mercador comprava e o preço ao qual vendia, era considerado desonroso numa sociedade que exaltava as nobres virtudes do assassinato e reverenciava aqueles que viviam ‘graças ao cansaço e à labuta’ – nas palavras de uma carta constitucional da época – dos camponeses". (Tigar e Levy 1978: 20). Sendo uma classe marginal no sistema de então, a burguesia teve de buscar formas de criar espaços para consolidar sua concepção de mundo nas entranhas da sociedade que lhe era hostil. Uma análise acurada da história da ascensão da burguesia ao poder mostra que o direito teve papel essencial nessa consolidação. Tigar e Levy apresentam três aspectos importantes na relação entre a burguesia nascente e o Direito: "Em primeiro lugar, na extensão em que se pode falar em Direito na selva da vida feudal, ele ou silenciava sobre o comércio ou lhe era hostil..À medida que aumentava o número, o poder, dos comerciantes, os ideólogos jurídicos desta classe fizeram um esforço para justificar o lugar do comércio na simetria da vida feudal. Buscaram também uma acomodação com o Direito feudal e procuraram explorar-lhe os pontos fracos. Em segundo lugar, à medida que o comerciante ampliava seu campo de atividades e criava as instituições de comércio, entrava em choque direto com os interesses econômicos e políticos dos senhores feudais de uma outra parte do território... Por último, haviam leis que os próprios mercadores elaboraram, a ordem jurídica que conceberam para servir a seus próprios interesses." (Tigar e Levy 1978: 20-21). A classe mercantil vivia em confronto com as leis e os costumes da época. Para transformar essa realidade, a burguesia teve de procurar "brechas" e contradições dentro da própria ordem feudal e foi criando – através de praticas reiteradas e de intensa luta política - suas normas e seus tribunais, que mais tarde serviriam de base para a sociedade que estava em gestação. A burguesia soube apreender o papel político do direito, entendeu sua função organizadora das relações sociais – compreendida essa como um processo de construção da hegemonia política e social –, utilizou-o para consolidar seus valores e, através de um longo processo de luta política, foi moldando a sociedade à sua imagem e semelhança. Em síntese: o direito teve papel importante na construção de sua hegemonia política e social. Justamente por entender o papel do direito, depois de derrubar o sistema feudal e construir uma ordem que atendia a suas necessidades, a burguesia abandonou todos os instrumentos que lhe serviram de instrumento de ascensão ao poder com o objetivo único de perpetuar as relações sociais que lhes eram favoráveis. O jusnaturalismo – que fundamentava seu direito de insurreição –, os costumes e as práticas que foram pilares para a construção de sua hegemonia precisavam ser controlados. Plauto Faraco de Azevedo retrata essa questão de forma esclarecedora: "Efetivamente, sucedeu que, desde o início do século xix, com a instalação definitiva da burguesia no poder, com a aplicação em seu proveito de uma ordem jurídica estatal elaborada e defendida nos sistemas jusnaturalistas e em particular na codificação do novo direito burguês, desaparece o caráter revolucionário do pensamento jurídico burguês e da burguesia em geral. Sua ciência tem, então, por objetivo reforçar o direito existente e não destruí-lo através da revolução. Não se está mais à procura de um novo direito natural, eis que não só foi ele encontrado como foi escrito nas leis. Trata-se tão-só, daí em diante, de aplicá-lo. Torna-se, em conseqüência, dominante o método do direito positivo dogmático." (Azevedo 2000: 42 e 43). A burguesia precisava de um instrumento que garantisse a manutenção da ordem que ela havia criado, precisava de uma forma de "petrificar" as relações sociais. É sob essa ótica que a forma jurídica e o positivismo jurídico devem ser entendidos. Ela corresponde, na verdade, às necessidades da classe que ascendia ao poder. A codificação do direito foi uma necessidade sua, a qual é fruto de um momento histórico e não tem um sentido universal. Uma coisa é a forma jurídica, a lei escrita, outra é o direito, que é um processo histórico construído pela as relações sociais, ou seja, pelos seres humanos organizados em sociedade. Toda ordem social pressupõe relações humanas. Para consolidação de determinada ordem, essas relações devem ser planejadas e devem possuir certa continuidade. Como e por quem serão planejadas dependerá do sistema social e político dessa determinada sociedade. O direito é um mecanismo que organiza as relações sociais, dando-lhes uma orientação e certa continuidade. Essa organização tem por fulcro consolidar determinados valores em determinada sociedade; esses valores, por sua vez, são historicamente determinados pelas próprias relações sociais; e essas relações têm seus limites impostos pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas. O grau de complexidade que as relações sociais e institucionais alcançaram - com a multiplicidade de ações que o ser humano é obrigado a realizar para produzir e se reproduzir, independentemente de sua vontade - não permitem simplificações nem tampouco visões estreitas acerca do papel do direito. Há que se buscar um entendimento do direito em sua totalidade, compreendendo-o como um produzir-se da própria experiência humana, como um mecanismo de consolidação de determinados valores e de determinados objetivos. Como a humanidade pode produzir e se reproduzir sem uma organização política e social? Como uma Nação pode relacionar-se com outra sem um conjunto de princípios que balizem essas relações? Como irão se concretizar as relações entre os blocos econômicos? Até onde vai o poder do Estado com relação a outro Estado? Qual o limite do Estado perante o ser humano? Podemos construir outra forma de organização política? De onde surgirá essa nova forma de organização? As respostas a essas perguntas não podem ser encontradas distanciadas do que a própria humanidade produziu até o atual momento histórico. Não podemos criar uma nova sociedade desconectada da antiga. O novo tem, necessariamente, de ser construído dentro do velho, deve existir uma transição do velho para o novo. As transformações sociais não se dão por "saltos" impostos pela nossa vontade, nem tampouco se realizam dentro de um laboratório, mas são construídas em uma sociedade real, com seres humanos reais e sob condições econômicas e políticas concretas. A humanidade ainda não inventou uma forma de organização política capaz de dar conta da complexidade político-organizativa diferentemente da atual. Não há, no horizonte imediato, outra forma de estruturação social que não a do Estado como organizador da sociedade. Em outras palavras, o fim do Estado pode até ser um objetivo estratégico, mas não está no nosso horizonte histórico a sua destruição; portanto, é a partir dele e com ele que iremos criar as bases da nova sociedade.

O objetivo de destruição do Estado não pode ser mais entendido como fim do direito, mas justamente o contrário. O direito deve ser utilizado na luta de classes para alcançar avanços que podem ajudar numa transição longa e complexa que é a construção do socialismo/comunismo. O direito deve ser entendido e utilizado pelos marxistas – como foi pela burguesia – como um instrumento da luta política pela substituição do Estado capitalista por outra forma de organização política e social mais avançada. O direito não substitui a revolução, isso tem que ficar claro. Entendo que ele pode ser um instrumento a serviço dela. Precisamos utilizar todos os meios e espaços possíveis de luta. Para tanto, precisamos nos despir de pré-conceitos, modelos e dogmas. Entender que o processo revolucionário é longo e que compreenderá várias transições e que o campo do direito tem um potencial importante nessas transições, sendo fundamental para o futuro da luta de classes. Não sei qual fisionomia terá a sociedade socialista e sua organização política e social, mas de uma coisa tenho convicção: ela nascerá e será testada nas entranhas da atual.

Contribuição para uma nova visão marxista do direito

Anteriormente, apresentei os elementos que entendo importantes e que devem ser levados em consideração para uma real apreensão do direito, quais sejam: a) a infra-estrutura ou base econômica, na qual incluo o grau de desenvolvimento das forças produtivas internacionais e nacionais; b) as instituições políticas – que compreendem Executivo, Legislativo, Judiciário, funções essenciais à Justiça, etc.; c) as instituições sociais – que abrangem as entidades sindicais, estudantis, comunitárias, enfim, os movimentos sociais em geral; e, d) o grau de desenvolvimento da luta de classes, tanto internacional como nacional.

Para garantir a sobrevivência do ser humano e a execução de seus objetivos essenciais, é necessária a instauração de uma ordem que direcione e organize as relações sociais. Como ficou comprovado toda sociedade precisa de normas – por mais rudimentares que sejam -, não importa o grau de desenvolvimento ou o conteúdo destas relações. Para determinada sociedade – não importa se capitalista, socialista ou comunista - continuar existindo e alcançar seus objetivos, é necessário que os meios de adaptação social, notadamente o direito, garantam a continuidade dessa sociedade.

O direito é o instrumento que cumpre a função de dar estruturas a estas relações sociais, dando-lhes forma e condições de consolidar os objetivos de determinada sociedade. Ele funciona como estruturador e mediador das relações sociais, econômicas e políticas; portanto, relações de poder. O direito serve como amálgama e orientador da sociedade em desenvolvimento.

O espaço em que se dá a produção do direito é complexo e possui várias esferas, pois abrange o próprio produzir-se de determinada sociedade. O direito posto como está hoje, sob a hegemonia da burguesia, exerce um papel de freio do desenvolvimento social. Os entraves positivistas não permitem seu desenvolvimento pleno, não deixam que ele exerça seu potencial estruturador e mediador de determinada sociedade. Ou, como expõe o professor Herkenhoff:

"O positivismo reduz o direito a um papel mantenedor da ordem. Sacraliza a lei. Coloca o jurista a serviço da defesa da lei e dos valores e interesses que ela guarda e legitima, numa fortaleza inexpugnável".(Herkenhoff, 2001: 16).

O positivismo jurídico – não importa sua variável – que fundamenta e estrutura o nosso pensamento jurídico é limitado para a apreensão da complexidade social. De maneira simples, podemos dizer que o positivismo, tem por pressuposto que só é direito aquilo que emana do Estado; portanto, só leva em conta as leis escritas de determinado Estado. Em nome de uma pseudo neutralidade, deixa a complexidade da realidade social fora de seu horizonte.

Tendo em vista seu papel essencialmente político, o direito para fazer uma mediação que consiga apreender toda a complexidade social, precisa estar permeável a todos os elementos que compõem essa sociedade. O direito, como está estruturado, não leva em consideração a complexidade das relações sociais, ou seja, da experiência humana. A ciência e a filosofia marxista podem fazer com que o direito rompa com seus entraves positivistas. Defendendo a necessidade de um novo instrumental teórico para o direito. Esse instrumental teórico é o marxismo. Vários juristas já defendem uma nova concepção teórica para o direito, defendem um encontro do direito com a realidade social. Plauto Faraco de Azevedo defende claramente o encontro do direito com a realidade na qual está inserido:

"Não se pode considerar a norma jurídica isoladamente, sendo necessário buscar sua conexão com seu e fim, com seu conteúdo ético-jurídico e com sua repercussão social, com as condições históricas em que surge com seu desenvolvimento em nossa época. Donde ser indispensável ligar vários aspectos: O histórico, o sociológico e o sistemático, ou, como dizia o jovem Savigny, o filosófico. Só assim, com está visão ampla, pode a Ciência jurídica desempenhar de modo satisfatório a tarefa social que lhe incumbe." ( Azevedo, 1999: 58 e 59).

Esse papel - de aproximação do direito com a realidade – é tarefa do marxismo, só ele pode realizar uma revolução no direito, fazendo com que ele vá ao encontro da realidade social. Com o marxismo o direito pode livrar-se do positivismo, levando em conta a totalidade da experiência humana. Tornando-se um instrumento capaz de compreender e apreender os diversos componentes da sociedade, os fatores culturais dos diferentes grupos sociais, os interesses das diferentes classes.

A ideia de tornar o direito permeável à complexidade do produzir e do reproduzir-se da sociedade não é uma novidade, existe uma série de "movimentos" nesse sentido. A Nova Escola de Direito, o chamado "Direito achado na rua" ou Direito Alternativo, e os "Abolicionistas" são exemplos importantes dessas tentativas. Há, com relação a esses movimentos, um grande desconhecimento por parte dos marxistas. Nós temos um vezo antigo, qual seja, adoramos colocar um rótulo em pensamentos que não dominamos. Se determinado pensamento parece não estar dentro de nossa "cartilha", colocamos um rótulo e, do alto de nossa sabedoria, decretamos sua invalidade.

A teoria marxista pode fazer com que o direito dê um salto qualitativo frente à complexidade das relações sociais, tendo um papel importante na luta por uma sociedade realmente humana. Só o manancial teórico marxista está apto a captar toda a complexidade da realidade social, convertendo-a em uma verdadeira fonte de enriquecimento do direto. O marxismo pode utilizar todo o potencial que o direito – enquanto estruturador, mediador e orientador das relações políticas e sociais – pode oferecer em um processo longo de transição para uma sociedade socialista.

O objetivo de Lênin – que entendia o marxismo com uma teoria revolucionária e não como um dogma - e de todos os grandes marxistas ao longo da história foi construir e aperfeiçoar a teoria marxista dentro de suas realidades. Não podiam - nem queriam - prever o futuro. Tampouco criaram uma religião com dogmas inquestionáveis.

Não pretendo determinar todos os elementos para uma nova visão marxista acerca do direito. Seria uma contradição. Pretendo iniciar esse debate e apresentar duas convicções, quais sejam: a de que o marxismo tem importante papel para a transformação do direito e a de que o direito tem um grande papel na luta de classes e na transição para uma sociedade socialista

Entendo que nós marxistas temos um grande caminho a percorrer e muito que construir no campo do direito, mas para tanto, parafraseando Stucka, precisamos parar de mudar de nome as ruas do marxismo, bem como parar de pintar suas velhas paredes de vermelho, precisamos é atualizá-las.